Amalia Decker retrata a Bolívia em "Tardes de Chuva e Chocolate"

por Agência LUSA

Amalia Decker Márquez, jornalista e autora de "Tardes de Chuva e Chocolate", participou na guerrilha de Che Guevara na Bolívia, exilou-se no México aos 17 anos e foi deputada quando regressou, antes de se dedicar à literatura.

Editada em Portugal pela Quidnovi, "Tardes de Chuva e Chocolate" é a sua segunda obra - depois de uma estreia auspiciosa com o romance "Carmela" (2001), sem tradução portuguesa - e, apesar de uma capa com flores cor-de-rosa, não é literatura "light", nem mais um caso do "realismo mágico" que durante décadas caracterizou a literatura da América latina.

"É a história de um jovem casal italiano que emigra no final da Primeira Guerra Mundial, levando na bagagem memórias, odores e sabores, para ir para uma terra de índios, um território desafiador, cuja realidade desconhecem e que é isolado, fora do mundo urbano, verdadeiramente mítico, quase como Macondo (a aldeia de "Cem Anos de Solidão", de Garcia Márquez)", disse a autora, em entrevista à Lusa.

Sublinhando considerar que "a realidade latino-americana ultrapassa sempre a ficção", Amalia Decker congratulou-se por, "sem tê-lo pretendido, ter feito um livro de homenagem àqueles que têm coragem de emigrar dos seus países, porque não é fácil fazê-lo".

Na sua narrativa, que abrange todo o século XX e inícios deste, muitos dos cenários e alguns dos mais importantes acontecimentos históricos, políticos e sociais situam-se na Bolívia, embora também se retrate uma Europa em tempos difíceis e trágicos.

A escritora, de 52 anos, define este seu segundo romance como "uma história de mulheres", na qual se mistura a luta por ideais genéricos (direito de voto, luta pela terra), com "a vivência da sensualidade" das protagonistas.

"O casal de italianos compra por quase nada um belo território, passam de pobres e miseráveis em Itália a latifundiários na Bolívia.

E a eles e às duas filhas que tiveram coube-lhes em sorte viver o grande processo da Revolução de 1952", relatou.

"Até esse momento - explicou -, as mulheres e os indígenas não podiam votar. Então, fez-se uma revolução em que se consagrou o voto universal, por um lado, e, por outro lado, se repartiram as terras.

As terras foram tiradas aos proprietários e distribuídas pelos camponeses".

Uma das filhas, que "amava profundamente a terra em que tinha nascido", lutou com o Estado boliviano para defender o que considerava seu, argumentando que, se o lema da revolução era "A terra a quem a trabalha", aquela terra era sua, porque ela a trabalhava.

"`Eu trabalho a minha terra, eu semeio a minha terra, eu sei quando a minha terra está cansada, sei quando a minha terra tem filhos, sei como combater as pragas`, é o que ela diz, e transforma- se numa boliviana de cepa que é capaz de enfrentar até os desígnios do Estado para defender um território que é seu", frisou a autora.

A outra filha, que "vive sonhando com a ideia de voltar à Itália de seus pais, porque considera que aquele é um lugar rodeado de montanhas e de índios que falam uma língua estranha, que ela nunca tentou sequer aprender", é uma personagem que surpreendeu a escritora.

Começou por ser "uma personagem um pouco obscura no romance, mas escapou-se de mim e transformou-se numa mulher maravilhosa, profundamente comprometida com as causas libertárias, quando chega a Paris e se apaixona por um homem da resistência espanhola", observou.

Para Amalia Decker, esta é também "a história da dualidade do que ocorre com as pessoas que imigram e, ao mesmo tempo, o reflexo do que poderá ser não só a Bolívia, mas o mundo em geral".

"Se formos à Argentina, verificamos que os argentinos têm muito de italianos, houve muita imigração de italianos. à Bolívia chegaram imigrantes de todo o lado: jugoslavos, italianos, alemães, etc., e o que se fez foi amalgamar a raça", descreveu.

"Os bolivianos são o resultado dessa amalgamação. E este romance trata um pouco disso", referiu.

Admitindo que "são poucos os escritores bolivianos conhecidos no mundo", Amalia Decker Marquez afirmou que "são muitos os factores" que explicam isso, a começar pelo facto de "a Bolívia ser um país complicado, com muitas dificuldades, onde a literatura não é uma prioridade".

"Não há políticas a nível do Estado que promovam a literatura", declarou a autora, explicando que existe apenas um Prémio Nacional, recentemente criado pela editora Alfaguara, que chegou à Bolívia "interessada basicamente em textos escolares" e que, a dada altura, "para apoiar a cultura, resolveu promover um prémio literário".

No entanto - ressaltou -, "isso não quer dizer que não haja escritores nacionais e bons, que lamentavelmente não podem `sair` para o estrangeiro - não é fácil".

No seu caso, indicou, teve "a sorte" de ter uma agente literária, a francesa Anne-Marie Vallat, que vive em Espanha e se apaixonou pelo seu primeiro romance.

A partir daí, começou o processo de "internacionalização" da sua obra: agora, com a publicação de "Tardes de Chuva e Chocolate" em Portugal, abriram-se outras portas e o romance está prestes a ser traduzido em francês e italiano, facto pelo qual diz sentir-se "profundamente comovida e agradecida".

"Sei que não vai ser fácil - comentou - mas estou disposta a continuar a escrever, porque penso que a palavra é construtiva, não é uma esperança cega, é uma esperança convicta de que a palavra muda [as pessoas]".

"A palavra faz-nos reflectir, não simplesmente aquela que nos sai da boca com muita facilidade, mas também a que nos obriga a ficar em silêncio, a escutarmo-nos a nós mesmos, para sabermos o que vamos dizer, o que estamos a dizer ou o que ouvimos", defendeu.

A romancista acabou agora de escrever o seu terceiro livro, que tem também a política do seu país como pano de fundo, facto que tem tentado evitar mas de que não conseguiu ainda desligar-se, por ser a realidade que conhece.

"Envolvi-me na política desde muito cedo e tento afastar-me dela nos meus livros, mas é difícil, por causa da velocidade a que as coisas sucedem. Na Bolívia, a eternidade dura um segundo", concluiu.

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