Baldios, migrações e fronteiras nos próximos documentários de José Vieira

por Lusa

Os baldios em Portugal, concretamente no interior do país, são tema do novo filme de José Vieira, a estrear em 2020, revelou hoje o realizador radicado em França, presente no festival Vista Curta do Cine Clube de Viseu.

Os baldios andam a ser trabalhados "há alguns anos" pelo realizador, "já com muitas horas" de filmagens e "muito trabalho feito", mas "só agora é que chegou o financiamento do lado português, porque de França já havia", revelou José Vieira à Lusa.

O realizador desejava ter apresentado o filme ainda este ano, mas, agora, "já será possível em 2020".

Nascido em Oliveira de Frades, no distrito de Viseu, emigrante em França desde 1965, para onde partiu com a família aos sete anos, José Vieira falou à agência Lusa durante o festival Vista Curta, do Cine Clube de Viseu, que dedicou a edição deste ano ao cineasta que tem dedicado o seu trabalho aos emigrantes com longas-metragens como "A Fotografia Rasgada", de 2002, e "A Ilha dos Ausentes", de 2016.

"Para mim é muito agradável estar aqui [em Viseu]. O que é agradável é poder vir aqui assistir às sessões e aos debates e ir dormir a casa dos meus pais, em Oliveira de Frades, onde nasci [...]. Estou mais à vontade, não estou num hotel, é muito mais agradável", começou por assumir o cineasta.

Com todo um historial cinematográfico dedicado à emigração, José Vieira não esconde que, todos os seus filmes têm a emigração presente, como este em que está a trabalhar.

Este novo projeto, porém, "é mais dedicado aos baldios, que o Estado ocupou nos anos [19]40, deixando os mais pobres na miséria, sem terra, e obrigando as pessoas a saírem dali, porque não havia meios para viver".

"Pedi que explicassem o que é um baldio, porque as pessoas em França não sabem o que é um baldio, porque baldio é uma coisa portuguesa. Existiu em toda a Europa, mas desapareceu, mas em Portugal ainda existe", contou.

Mais do que saber o que é um baldio, a José Vieira, porém, o que "interessa é descobrir através da história das pessoas" a realidade de que ouvia falar em miúdo, em casa, e, para isso, e "sempre com a máquina de filmar na mão", foi para "a serra gravar as pessoas, estar com elas, [gravar] as cantigas e as histórias de vida".

"Sempre pensei que se pode fazer história a partir das memórias das pessoas. A memória não é a história, mas a memória pode contribuir para a história, porque, para fazer história, é preciso trabalhar, ir aos arquivos, consultar os arquivos e foi o que fiz", adiantou o também sociólogo.

O trabalho, porém, tem-se revelado "muito difícil", porque, como explicou, "não há registos daquela época, em lado nenhum, aparece uma coisa ali outra noutro sítio, mas não há nada, porque na altura não se registava nada, principalmente do povo. Há registos das casas dos guardas e de estradas, do povo é que não".

A par deste filme, José Vieira tem em mãos outros projetos, um deles, também já com financiamento, tem em foco a fronteira, os migrantes e a fronteira, neste caso a franco-espanhola, em Hendaye, na atualidade, e as que emergem a partir dessa passagem.

"Há muitas pessoas, milhares mesmo, que morrem nas fronteiras, sabemos bem. Também morreram alguns portugueses na década de 60, mas agora é diferente. Como é que se passa a fronteira geográfica e como é que se passam todas as outras fronteiras? Da língua, da cultura, tantas outras que não são geográficas?", questionou.

É naquela fronteira, em Hendaye, que "muita malta nova que vem de África" passa atualmente, "porque quando Itália fechou as fronteiras, as pessoas que vinham da Líbia, passaram por Marrocos e atravessaram Espanha e chegaram ali, àquela fronteira", com França.

"Há uns dois ou três anos não passava praticamente ninguém por lá, praticamente não existia, já nem polícia lá havia e, quando Itália fechou as fronteiras, voltou a haver. Quando comecei o filme era sobre os portugueses, na década de 60. Mas agora existe esta realidade. Todos os dias chegam pessoas vindas de países africanos", contou.

Sobre este trabalho José Vieira não quis revelar muito mais, porque "os filmes vão-se construindo e vão ganhando forma à maneira que se vai filmando e ouvindo histórias", mas é, a par da película sobre os baldios, "um filme grande para terminar em 2020".

Ainda por terminar está também a história de Adsamo, na Serra do Caramulo, no concelho de Vouzela, distrito de Viseu, onde fez o filme "O Pão que o Diabo Amassou", estreado em 2012. Na altura, "existiam umas 60 ou 70 pessoas" e, agora, "devem ser menos de 50 e, tirando um casal jovem, os mais novos já têm mais de 50 anos".

O documentário cruza gerações, recupera memórias de uma população envelhecida, lembra os que partiram para trabalhar no Alentejo dos latifúndios e na poluição da antiga cintura industrial de Lisboa, ainda durante a ditadura, encontra sobreviventes da Guerra Colonial, e consegue um retrato do país e da sua história, numa aldeia no topo da serra, para onde apenas os seus habitantes se dirigem.

Agora, "a minha ideia é ver como é que uma aldeia está a desaparecer -- e vamos ver se vai desaparecer ou não --, é ver como é que as pessoas vivem numa aldeia assim, como é que as pessoas vivem o dia-a-dia e como é que veem o futuro da aldeia. É um projeto que não está muito concreto, mas continuo a filmar a vida das pessoas e eles falam do que se passa", revelou o cineasta que há mais de 30 anos filma fenómenos de emigração, porque a emigração portuguesa era uma história desconhecida, e por isso fez do documentário "uma militância".

Alguns habitantes de Adsamo, que participaram no filme "O Pão que o Diabo Amassou", marcam presença este sábado, no Teatro Viriato, em Viseu, onde, após a passagem da longa-metragem, haverá um debate sobre Portugal, a migração, o interior e o cinema, com a presença de José Vieira e de outros convidados.

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