Exposição mostra marcas da escravura e da tolerância na construção de Lisboa

por Lusa

As marcas da escravatura e da segregação, e também da tolerância e miscigenação na convivência cultural e religiosa em Lisboa, ao longo de 700 anos, são abordadas numa exposição que hoje se inaugura, no museu da cidade.

"Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910" é o título desta mostra que tem inauguração anunciada, no Pavilhão Preto do Museu de Lisboa - Palácio Pimenta, para as 18:30 de hoje, que abrirá ao público na sexta-feira, e ficará patente até 22 de dezembro deste ano.

Numa visita de imprensa à exposição, os comissários Paulo Almeida Fernandes e Ana Paula Antunes falaram no papel das minorias religiosas e dos residentes estrangeiros na construção da imagem de Lisboa, entre a Idade Média e a 1.ª República.

"O objetivo é chamar a atenção para a diversidade cultural e religiosa de que Lisboa foi palco e fonte da sua construção, ao longo dos séculos", justificou Paulo Almeida Fernandes, acrescentando que a capital "está cheia dessas marcas", sobretudo nas zonas históricas.

Ao longo do percurso do pavilhão são desfiados vestígios que contam histórias da cidade, através de pinturas, desenhos, lápides, documentos, esculturas, ex-votos e outros objetos provenientes do acervo do próprio Museu de Lisboa, mas também de outras entidades, desde museus, como o Museu Nacional de Arte Antiga, privados, como a Coleção Berardo, e de igrejas de Lisboa.

Há peças raras, ou nunca mostradas antes em contexto museológico, segundo os curadores, como as lápides moçárabes, ou um ex-voto do século XVII, proveniente da Igreja de Santa Catarina, com uma pintura que representa Nossa Senhora do Rosário com dois negros a seus pés.

"São dois devotos negros que deviam ter dinheiro suficiente para encomendar esta obra", explicou Ana Paula Antunes sobre a peça que também revela uma história de tolerância e inclusão, na época, ao permitir a representação e exposição de africanos numa igreja católica.

A história de Lisboa - e da imensa e diversa população que a habitou - faz-se destes episódios de inclusão, mas também de testemunhos de rejeição, segregação, expulsão e escravatura.

Esta Lisboa multicultural - retratada desde a Idade Média - foi criada por muçulmanos, cristãos e judeus, e também por espanhóis, franceses, ingleses, italianos, flamengos, alemães e galegos, e por africanos da era da escravatura.

Dividida em vários núcleos, o dedicado à Lisboa dos Africanos apresenta um enorme mapa com rotas da escravatura entre África, Américas e Europa, traçadas por portugueses, ingleses, espanhóis e holandeses, entre outros povos.

Estas rotas contabilizam mais de 12,5 milhões de pessoas traficadas durante cerca de 400 anos, do século XVI ao século XIX, segundo as estimativas do Trans-Atlantic Slave Trade Database (Banco de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos), iniciativa da Universidade de Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos, com apoio do National Endowment for the Humanities, de Washington, do Instituto Hutchins, da Universidade de Harvard, e do Instituto Wilberforce, da Universidade de Hull, no Reino Unido.

De acordo com estes dados, Portugal e Brasil (após a independência, em 1822) foram responsáveis pelo tráfico de 5,8 milhões de africanos, o que representa quase metade do total (www.slavevoyages.org/assessment/estimates).

O processo de abolição da escravatura em Portugal estendeu-se por mais de cem anos, dos primeiros decretos, com proibição no continente e na Índia, que remontam a 1761, até à abolição total, em todo o território português, proclamada em 1869 (com prorrogativas até 1878).

"A convivência nem sempre foi fácil, e houve muitos altos e baixos. É preciso olhar para o passado e para a memória coletiva se queremos que o futuro seja mais risonho", comentou a curadora Ana Paula Antunes.

Do "atropelamento" de outras confissões religiosas, como a expulsão dos judeus ou a obrigatoriedade da sua conversão, também dos africanos, que eram tidos como "criaturas sem alma", ou, mais atrás no tempo, das práticas religiosas dos muçulmanos, foram deixados vestígios, que ainda hoje se encontram.

É o caso de uma pia de abluções, a única prova de que existiu uma mesquita na Mouraria, no século XIV, ou a lápide judaica da construção de uma sinagoga, no século XIV.

Noutras épocas, os europeus também deixaram as suas marcas na cidade, nomeadamente os ingleses e os alemães, com os seus cemitérios próprios, e as respetivas igrejas dos seus cultos.

"Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910" mostra como, das grandes construções à vivência quotidiana, dos ofícios especializados à definição de bairros, da promoção de obras de arte à atividade livreira, da ocupação e da guerra, ao comércio, "não houve praticamente dimensão da existência de Lisboa da qual as comunidades religiosas minoritárias e estrangeiras residentes estivessem ausentes".

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