BCE soma críticas à reforma Centeno do sistema de supervisão financeira

por RTP
Mário Draghi, presidente do Banco Central Europeu Reuters

"Não é claro", "levanta dúvidas", "duvidoso", são apenas alguns dos mimos referidos no parecer assinado pelo presidente da instituição bancária europeia, Mário Draghi sobre o texto da proposta de lei portuguesa.

O parecer do Banco Central Europeu (BCE) sobre a reforma do sistema português de supervisão financeira, proposta pelo gabinete de Mário Centeno, acumula uma longa lista de inconformidades com as regras europeias.

A reforma da supervisão foi lançada em 2017 por Mário Centeno e o projeto legislativo está agora nas mãos do Parlamento.

Resta saber se as críticas do BCE terão peso suficiente para obrigar a uma revisão da proposta, de forma a ajusta-la às exigências europeias ainda antes das eleições legislativas. E se os pareceres igualmente críticos das entidades do sistema financeiro português- como a CMVM - serão também tidos em conta.

Desde as regras para a exoneração e substituição do Governador do Banco de Portugal (BdP) - que podem por em causa a sua independência -, à articulação entre este e o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (CNSF) a ser criado - e cujas competências iriam esvaziar ou sobrepor-se a competências do BdP - ou à autonomização da Autoridade de Resolução, as dúvidas do BCE acumulam-se.

"Para garantir a independência dos governadores dos bancos centrais nacionais (BCN) e dos membros do Conselho do BCE, cada Estado-membro tem de garantir a compatibilidade dos estatutos do seu BCN com os Tratados e com os Estatutos do SEBC", alerta mesmo o parecer do BCE, algo que, aparentemente, foi letra morta para os autores da proposta.

O ministro das Finanças, Mário Centeno, já disse que todas as dúvidas do BCE serão clarificadas.
Os casos do governador
"A disposição relativa à designação do governador de entre um dos membros do conselho de administração do BdP durante o seu mandato, não é compatível com os Estatutos do SEBC", refere quase sem preâmbulo o parecer da instituição.

Em causa, a duração do mandato, que deve ser de, no mínimo cinco anos.

A proposta portuguesa, apesar de prever "em geral uma duração do mandato de sete anos", admite que, em caso de substituição, o mandato se iria restringir ao "período remanescente da duração inicial do mandato do antigo membro do conselho de administração do BdP (designado como governador)", abrindo espaço a um mandato inferior a cinco anos.

O BCE é firme. "A proposta de lei tem de ser alterada para garantir que a duração do mandato do governador não pode ser inferior a cinco anos", refere.

Também as razões propostas para o afastamento de um governador do BdP são arrasadas.

"A Lei Orgânica do BdP é incompatível com os Estatutos do SEBC, na medida em que prevê a possibilidade de a designação de um governador depender de confirmação por um Governo recém-designado", explica o parecer.

"Isto porque a falta dessa confirmação produziria efeitos equivalentes à exoneração do governador, com um fundamento diferente dos previstos no artigo 14.º-2 dos Estatutos do SEBC, em especial dado que, nesses casos, o desiderato de salvaguardar a liberdade do governador face a influência política deixaria de poder ser alcançado", acrescenta o documento tornado acessível esta quinta-feira.

Até porque, lembra, "na sequência das alterações introduzidas pela Proposta de Lei, não só o Governo mas também a Assembleia da República podem propor ao Conselho de Ministros a cessação do mandato do governador", algo que, apesar de compatível com as regras europeias, pode "criar um nível suplementar de pressão política".

"Independentemente de o BdP ser objeto de um processo de reestruturação, o governador só pode ser exonerado se deixar de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções ou se tiver cometido falta grave", explica ainda o BCE.

"O BCE faz notar que os critérios de "sentido de interesse público" e "aptidão" introduzidos pela Proposta de Lei nos critérios a serem considerados na designação do conselho de administração do BdP são um pouco vagos", critica logo de seguida, propondo o regresso de termos como "idoneidade" e "experiência profissional".
E afinal como vai ser com o CNSF?
A proposta do Governo para a supervisão financeira também "não é clara quanto às atribuições" do novo Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (CNSF), em diversas facetas.

O BCE pede maior profundidade das disposições previstas na proposta. Aconselha aliás que, como Portugal tem um mercado financeiro "relativamente pequeno", existem argumentos, "de uma perspetiva de eficiência e de sinergias, a favor da concentração das responsabilidades de supervisão e macroprudenciais numa única autoridade", a saber, o BdP.

"Não é claro na proposta de lei se o CNSF tem poder decisório ou o poder para fazer recomendações públicas sobre instrumentos macroprudenciais existentes", bem como "tomar decisões" ou "fazer recomendações relacionadas ao legislador", sublinha e recomenda que "a participação do BdP no CNSF deverá permitir um acompanhamento efetivo dos riscos sistémicos identificados durante a atividade analítica do BdP".

Para o BCE "parece que o CNSF e o BdP avaliariam o risco sistémico em paralelo", pedindo maior clareza quanto à "interação entre o BdP e o CNSF relativamente à avaliação do risco sistémico e à implementação de medidas macroprudenciais".

O BCE considera que "é duvidoso ou, no mínimo, pouco claro se a proposta de lei cumpre este princípio", e que, caso seja criado o CNSF, "parece duvidoso que o BdP mantenha um papel de primeiro plano em matéria de política macroprudencial".

"A criação de uma pessoa coletiva de direito público separada responsável por atribuições de supervisão prudencial sob a autoridade do BdP não deve interferir com o desempenho efetivo de outras atribuições do BdP relacionadas com o funcionamento do Sistema Europeu de Supervisores Financeiros", refere também o parecer.
BdP, ANR e como seria a convivência?
A proposta de Lei prevê a criação da Autoridade de Resolução, que assumiria as responsabilidades do BdP como autoridade nacional de resolução (ANR).

Contudo, quanto a competências de resolução bancária, para o BCE "parece que o papel do BdP como Autoridade Nacional Competente não constituiria, por si só, base jurídica suficiente para que mantenha competências em matéria de planeamento da resolução, na falta da sua designação como Autoridade Nacional de Resolução".

"Seria útil clarificar a base jurídica com fundamento na qual o BdP assumiria atribuições acessórias relacionadas com a resolução, dado que aparentemente deixaria de ser a ANR", recomenda o BCE.

Também a coordenação entre ambas as entidades terá de ser melhor definida, considera. "Devem evitar-se dificuldades operacionais e práticas decorrentes de eventuais áreas cinzentas na distribuição de competências", aconselha.

"Dado que o BdP assumiria a liderança do planeamento da resolução e a Autoridade de Resolução seria responsável pela execução das ferramentas de resolução, seria importante existir um entendimento comum sobre o plano de resolução, considerando também que existe risco para a reputação do BdP caso a execução dos planos de resolução pela Autoridade de Resolução não seja bem sucedida", alerta o parecer.

O Banco Central Europeu propõe ainda a clarificação das normas de contratação e manutenção de profissionais contratados pelo BdP ou da ação da comissão de ética.

E contesta a supervisão da Inspeção Geral de Finanças, IGF, equacionada na proposta.

"Dado o âmbito alargado dos poderes da IGF e o facto de a IGF consistir num serviço administrativo que funciona junto do Ministério das Finanças, sob controlo hierárquico direto do Ministro das Finanças, as inspeções e auditorias realizadas por um serviço desta natureza não seriam compatíveis com as salvaguardas" previstas nas leis europeias, "destinadas a preservar a independência do BdP", esclarece.

O parecer considera ainda que as disposições atuais de proteção dos trabalhadores do BdP devem ser mantidas.

C/Lusa
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