Abusos sexuais. Papa quer comunidade a erradicar "cultura de morte"

por Ana Sofia Rodrigues - RTP
Stefano Rellandini - Reuters

O Papa endereçou uma carta sem precedentes a todos os católicos, insurgindo-se contra os abusos sexuais perpetrados por membros da Igreja. “Vergonha e arrependimento”, “atrocidades”, “cultura de morte” são palavras enunciadas por Francisco para reconhecer as falhas da Igreja nos casos de abusos sexuais. “Abandonamos os pequenos”, admite o Papa, exigindo tolerância zero e o fim do encobrimento destes casos.

É a primeira vez que o Papa se dirige a toda a comunidade de mais de mil milhões de Católicos sobre as denúncias de abusos sexuais que têm assombrado a Igreja Católica, “cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas”. Francisco escolhe palavras duras para apontar as falhas.
Cartas anteriores escritas pelo Papa sobre abusos sexuais eram dirigidas a bispos ou fiéis de determinado país.
“Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava sendo causado em tantas vidas. Nós negligenciamos e abandonamos os pequenos”, escreve o Papa nesta carta aberta disponível no site do Vaticano.

Na semana passada, foram conhecidos os resultados da maior investigação de sempre a abusos sexuais na Igreja Católica nos Estados Unidos, na Pensilvânia. Trezentos e um padres desse Estado abusaram de cerca de um milhar de menores ao longo de 70 anos.

É a este caso que Francisco se refere quando diz que, apesar de muitos casos fazerem parte do passado, “constamos que as feridas nunca desaparecem e nos obrigam a condenar veementemente essas atrocidades, bem como unir esforços para erradicar essa cultura da morte; as feridas nunca prescrevem. A dor dessas vítimas é um gemido que clama ao céu, que alcança a alma e que, por muito tempo, foi ignorado, emudecido ou silenciado”, argumenta Francisco, insurgindo-se contra as “medidas que tentaram silenciá-lo ou, inclusive, que procuraram resolvê-lo com decisões que aumentaram a gravidade, caindo na cumplicidade”. O grito das vítimas foi mais forte, argumenta. “Sentimos vergonha quando percebemos que o nosso estilo de vida contradisse e contradiz aquilo que proclamamos com a nossa voz”, reforça o Papa.

O Papa reconhece que “nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar recuperar o dano causado”. No entanto, quer para o futuro uma cultura capaz de evitar que essas situações aconteçam e que “não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas”.

Francisco reconhece esforços em alguns países, mas quer a implementação da “tolerância zero” e formas de prestar contas para “todos os que realizem ou acobertem esses crimes”. “Tardamos em aplicar essas medidas e sanções tão necessárias, mas confio que elas ajudarão a garantir uma maior cultura do cuidado no presente e no futuro”, reforça.

O Papa convida o Povo fiel de Deus ao exercício penitencial da oração e do jejum, mas também à ação. “Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso em nossas comunidades, sem a participação activa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista”, alerta o Papa.
“É imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas, clérigos, e inclusive por todos aqueles que tinham a missão de assistir e cuidar dos mais vulneráveis. Peçamos perdão pelos pecados, nossos e dos outros”, escreve o Sumo Pontífice, reafirmando o compromisso em garantir a proteção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade.

A carta do Papa Francisco surge poucos dias antes de uma viagem à Irlanda, onde se anteveem protestos por parte de sobreviventes a abusos sexuais. A Igreja Católica tem estado este ano enredada numa série de escândalos de abusos, nos Estados Unidos, Chile e Austrália. Muitos desses casos envolviam situações de encobrimento por parte de bispos, arcebispos ou outras figuras de relevo da Igreja.
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