Acusações de "conspiração" contra Assange suscitam controvérsia

por RTP
Hannah McKay, Reuters

Durante vários anos, as autoridades norte-americanas hesitaram sobre o motivo a invocar para proceder contra o fundador de Wikileaks. Quando se decidiram por um motivo, mantiveram-no secreto. Agora a acusação veio a público e a ONU recomenda um "julgamento justo".

A porta-voz da ONU para os direitos humanos, Ravina Shamdasani, citada pela agência Reuters, manifestou hoje a expectativa de que "todas as autoridades competentes garantam ao sr. Assange que o seu direito a um julgamento justo será observado pelas autoridades, inclusive em qualquer processo de extradição que venha a ter lugar".
O presidente norte-americano referiu-se brevemente ao processo de Assange numa entrevista, abstendo-se de emitir uma opinião e sublinhando o "excelente trabalho" que está a fazer o procurador-geral. Donald Trump refugiou-se portanto na separação de poderes e foi muito mais lacónico do que Hilary Clinton.
A candidata vencida nas eleições de 2016 manifestou-se a favor de uma condenação de Assange por ter hackeado registos do Pentágono e gracejou mesmo sobre a ironia que consiste no facto de que Assange "possa ser o único estrangeiro que esta Administração deixa entrar nos Estados Unidos".
Uma acusação para o consenso bipartidário
Na acusação conhecida desde ontem, o procurador-geral norte-americano refere-se às tentativas que o fundador da plataforma digital Wikileaks fez para fornecer a Bradley Manning (mais tarde Chelsea Manning) uma forma de entrar nas contas do Pentágono sem ser identificado com o seu nome de utilizador.

Segundo o libelo acusatório "faz parte da conspiração que Assange tenha encorajado Manning a fornecer informação e gravações de departamentos e agências dos Estados Unidos". Também segundo o mesmo libelo, "faz parte da conspiração que Assange e Manning tenham tomado medidas para ocultar Manning como fonte da revelação de informações classificadas à Wikileaks".

A opção do procurador por acusar Assange de conspiração suscitou, num primeiro momento, aprovação entre democratas que receavam um processo por divulgação de informações classificadas.

Ainda em novembro de 2018, quando acidentalmente veio a público que havia uma acusação secreta contra Assange, o advogado Bradley Moss, fizera-se eco desse receio, afirmando num artigo publicado em The Atlantic: "Se Assange pode ser acusado por publicar fugas de informação de documentos classificados, qualquer outro meio de comunicação ficará em risco de ser acusado exactamente pelo mesmo motivo".

E na verdade, a ter optado por uma acusação por divulgação de leaks, o procurador estaria a estabelecer um precedente perigoso para a liberdade de imprensa, e nomeadamente uma jurisprudência inibitória para qualquer jornalista que agora conseguisse, por exemplo, acesso ao texto integral do relatório Mueller ou às declarações fiscais de Donald Trump - e que quisesse divulgar o conteúdo desses documentos alegadamente explosivos para o presidente.

Mas, aparentemente, o procurador da era Trump não quis tomar aqui uma opção radicalmente diferente do procurador da era Obama, que também decidira não acusar Assange da divulgação de material classificado, com pressupostos que foram explicados em 2013 por Matthew Miller, um porta-voz do Departamento de Justiça: "O problema que o Departamento sempre teve ao investigar Julian Assange é que não há maneira de acusá-lo por publicar informação sem que a mesma teoria seja aplicada a jornalistas".
Um consenso birpartidário ... não consensual
O aplauso de Hillary Clinton a uma acusação do procurador da era Trump por intrusão nos computadores do Pentágono e por "conspiração" entre Assange e Manning, reflectindo embora uma atitude comum nos arraiais democratas, não é pacífico entre os defensores da liberdade de imprensa.

Em artigo de opinião hoje publicado no diário de referência New York Times, Michelle Goldberg assume uma aberta antipatia por Assange, afirma mesmo que ele "pode muito bem merecer ir para a prisão", mas confessa ao mesmo tempo o seu desconforto perante o libelo acusatório. É certo, admite, que este evitou o ataque mais frontal contra a liberdade de imprensa, ao abster-se de apontar o dedo à "divulgação". Também é certo que essa opção teria consistido em quebrar um tabu, ou "atravessar um Rubicão".

Mas ainda assim, observa Goldberg, o libelo acusatório formulado pelo procurador é inquietante por "tratar vulgares processos de recolha de informações como elementos de uma conspiração criminosa".

Ora, segundo explica a autora, o encorajamento de Assange a Manning para revelar documentos do Pentágono é o que fazem todos os jornalistas que pedem a colaboração de whistleblowers para revelarem abusos de autoridade que configurem delitos ou crimes. Não pode ser considerado "conspiração" algo que se encontra escorado na legalidade e no interesse público. Quando conflituam, por um lado, o secretismo burocrático e, por outro, o interesse público, é este que deve prevalecer. Negar a primazia ao interesse público, equivaleria a cometer uma grave entorse contra preceitos democráticos fundamentais.

Do mesmo modo, as tentativas de Assange para encontrar uma forma de hackear contas do Pentágono sem deixar uma pégada identificável de Bradley Manning não podem configurar uma "conspiração", porque é isso mesmo que, segundo os códigos deontológicos correntes, devem fazer os jornalistas que queiram proteger as suas fontes.

Finalmente, observa Goldberg, as provas de "conspiração" apresentadas pelos procuradores militares no julgamento de 2011 contra Manning consistiam apenas no registo de chats em que este pedia ajuda a Assange para descobrir uma password. Nunca foi provado que Assange tenha conseguido fazê-lo e, hoje, o libelo acusatório contra Assange parece confirmar que ele nunca o fez, ao sustentar que, em caso de sucesso, essa password "teria permitido" a Manning aceder a computadores do Governo sem se identificar.

Assim, conclui a jornalista Michelle Goldberg, "qualquer teoria legal que o Departamento de Justiça de Trump utilize contra Assange poderá também ser usado contra todos nós".
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