Amnistia Internacional urge UE a consertar "sistema falhado" que deixa pessoas à deriva no mar

por Lusa
Pascal Rossignol - Reuters

Lisboa, 18 jan (Lusa) -- A Amnistia Internacional defendeu hoje que os líderes da União Europeia (UE) devem agir urgentemente para consertar um "sistema falhado" que desencoraja os Estados de ajudar refugiados e migrantes em perigo no mar, nomeadamente na rota do Mediterrâneo Central.

O apelo da organização não-governamental (ONG) de defesa dos direitos humanos consta num relatório divulgado hoje que foca o caso dos navios de organizações humanitárias que têm ao longo dos últimos meses resgatado centenas de pessoas no Mediterrâneo e que depois aguardam em alto mar vários dias, e em certos casos várias semanas, pela luz verde de um país europeu para aportar num porto seguro.

"O espetáculo vergonhoso de navios de resgate a serem bloqueados e de mulheres, homens e crianças encalhados no mar durante semanas, ao mesmo tempo que políticos competem entre si para serem os mais insensíveis ao recusarem o desembarque destas pessoas ou o acesso a qualquer tipo de assistência, nunca mais se deve repetir", afirma Matteo de Bellis, investigador da AI perito em asilo e migrações, no texto divulgado pela ONG internacional.

"Os líderes devem adotar urgentemente medidas para concertar um sistema falhado que está a fracassar, tanto com os países que estão na `linha de frente` da chegada de migrantes [como Espanha, Grécia e Itália] como com as pessoas que procuram segurança e que são abandonadas no mar ou que desesperam nos países da UE com procedimentos de asilo ineficientes ou sobrecarregados", reforça o representante.

Matteo de Bellis frisa que "propostas para reformar o sistema atual ou para consertar temporariamente as suas deficiências têm sido paralisadas por alguns governos, mas ainda há uma janela de oportunidade antes das eleições europeias de maio".

O documento da AI lembra que já no início deste novo ano de 2019 os governos europeus demoraram quase três semanas para decidir o que deviam fazer com as 49 pessoas, incluindo várias crianças, que tinham sido resgatadas no Mediterrâneo por navios de duas ONG alemãs (Sea Watch 3 e Sea-Eye) e ficaram bloqueadas no mar durante 19 dias.

Estas pessoas foram, entretanto, autorizadas a desembarcar em Malta e oito países da UE ofereceram assistência, entre eles Portugal.

"Esta não é a primeira vez que isto aconteceu e provavelmente não será a última", lamenta a AI, recordando ainda que também neste mês de janeiro as autoridades espanholas decidiram impedir o navio "Open Arms" da ONG catalã Proativa de realizar ações de resgate na rota do Mediterrâneo Central (da Líbia para Itália).

Perante estes acontecimentos, a AI lembra e identifica decisões, dilemas e problemas que contribuíram para o atual panorama.

Um dos destaques vai para a ausência de "um sistema justo" à escala europeia de partilha de responsabilidades na receção de migrantes e requerentes de asilo entre os Estados-membros da UE e como essa ausência teve implicações significativas nos chamados países da `linha da frente`.

"Os governos da UE colocaram em prática uma série de medidas para bloquear as passagens no Mediterrâneo Central, incluindo o reforço da capacidade da guarda costeira líbia para intercetar pessoas à procura de segurança e dificultar o trabalho das ONG que realizam operações de busca e resgate", refere a organização.

Para a Amnistia, esta estratégia "centrou-se em manter as pessoas afastadas da Europa", apesar de a Líbia "não ter capacidade para coordenar os resgates" e dos termos consagrados na lei da internacional: "As pessoas resgatadas no mar não podem ser levadas para um país, como é o caso da Líbia, onde podem estar expostas a tortura, extorsão e estupro".

E a organização acrescenta que, com o objetivo de reduzir o número de chegadas aos respetivos portos, alguns países da UE retiraram ou reduziram as patrulhas efetuadas pelas respetivas forças marítimas nacionais.

Lacuna que fez entrar em cena os navios de resgate conduzidos por ONG, aos quais foram negados regularmente um porto de desembarque, particularmente em Itália e Malta.

"Alguns governos europeus têm mesmo impedido que as ONG conduzam as suas atividades de salvamento, por meio de investigações criminais e obstáculos burocráticos", salienta a análise da AI, que faz ainda questão de referir que "o número de travessias irregulares nas fronteiras externas da Europa caiu em 2018 para o nível mais baixo em cinco anos, segundo dados da agência europeia de gestão de fronteiras (Frontex)".

"No entanto, algumas pessoas acreditam que existe uma `crise` de migração em curso no Mediterrâneo", realça a AI.

Perante esta "situação complexa" que "não tem uma solução simples", a Amnistia defende que os governos europeus "devem trabalhar juntos numa solução conjunta que funcione para todos os Estados e que, crucialmente, funcione para as pessoas", mas também aponta para a necessidade de eliminar "a retórica que demoniza os refugiados e os migrantes e aqueles que tentam ajudá-los puramente para ganhos políticos".

"Os líderes europeus não podem mais virar as costas às pessoas retidas no mar e a continuar a distorcer o debate sobre a migração para o seu próprio ganho político. Devem chegar urgentemente a um acordo sobre uma política de desembarque rápida e previsível, em linha com o Direito Internacional, e sobre um sistema justo de partilha de responsabilidades (...) entre os países da UE", conclui Matteo de Bellis.

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