Brexit: 28-1=27+1?

Num mundo de matemáticas, 28-1 é igual a 27. Mas num mundo de finanças, o Brexit pode significar que esse 28-1 é igual a 27+1, conta que qualquer aluno do ensino básico considerará errada. É todavia isso que Londres deseja, principalmente depois de os eleitores britânicos terem admitido que talvez se tenham excedido no aviso que queriam deixar contra o centralismo que estava a tomar conta dos diretórios europeus.

É sobre esta aparente contradição que surgiram por estes dias duas frases do presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, que dizem muito do que serão os eixos principais em volta dos quais vai girar a negociação entre Londres e Bruxelas.A primeira-ministra britânica, Theresa May, assinou ao início da noite a carta que desencadeia o Brexit, ao acionar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa. A missiva chegará esta quarta-feira ao presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk.


“Deve ser claro que ser membro da União Europeia não é o mesmo que não o ser”, disse Tajani, avisando Londres que nada continuará a ser como foi em termos de parceria, de uma União que se movia em bloco, a várias velocidades talvez, mas em bloco, submetida a um texto fundador comum, a decisões concertadas. Mas Tajani logo deixa um aviso, agora parecendo visar as capitanias de Bruxelas e Estrasburgo: “O Reino Unido vai deixar a União Europeia, não a Europa”.

De resto, arriscar escrever seja o que for sobre a saída do Reino Unido da União Europeia é tão certo como escrever sobre o divórcio de qualquer casal que viveu unido durante anos e não faz ideia do que será a vida a partir dos papéis assinados da separação.

Existe, no entanto, esse processo de negociação que vai, neste caso, não distribuir o que o casal construiu em conjunto, mas dividir o que o futuro lhe promete, agora que se separa. E este não será um capítulo fácil de fechar: a União Europeia não está só no mundo, tem acordos mais ou menos complexos com parceiros da Ásia às Américas.
Duas datas mais uma

Para já há duas datas insofismáveis: 23 de junho de 2016, o dia em que os britânicos decidiram em referendo que chegava de União Europeia, que o Reino estava muito melhor sozinho.

E hoje, 29 de março de 2017, um dia para a grande história da Europa, o dia em que Theresa May, a chefe do Governo britânico, puxa a cavilha do Brexit, uma granada de fragmentação que atingirá todos os 28 sem exceção e que já provoca movimentações fora do espaço comercial europeu. Fica por conta das lideranças europeias definir se esta não será a génese de uma União a desmoronar-se, com o Reino Unido a não ser mais do que um Estado-membro vanguardista, à frente do seu tempo, que antecipa futuras saídas.



Há, no entanto, uma data igualmente importante e que poderá, ela apenas, ter o condão de temperar o confronto que se adivinha difícil das negociações de divórcio entre Londres e a União Europeia. E essa data é 24 de junho de 2016, o dia – depois de uma noite e madrugada em que todos os cenários eram possíveis - em que os eleitores britânicos acordaram para uma manhã de digestão difícil. Do sentimento comum de que o reino havia cometido um erro, oficializada que estava a vontade.Uma frente de potenciais danos para o Reino Unido é a própria capital, Londres, enquanto quinta maior área económica metropolitana do mundo e grande centro financeiro da Europa.


Arrependimento foi a palavra que se ouviu, verdade ou não, de muitas das bocas que tiveram voz nessa segunda-feira em que os britânicos deixavam a Europa para lá da Mancha. Talvez seja esse o sentimento a explorar durante as negociações, reconfigurar o relacionamento entre Londres e os 27, mas sem tornar o divórcio numa luta sem quartel, que comprometa a nova parceria. Há a questão de acordos selados e acordos a selar e há o problema da segurança do espaço europeu, uma questão que não é de somenos para os planos da economia do Velho Continente na próxima década, pelo menos. As relações de força serão diferentes com a Rússia e a China sem os ingleses deste lado da mesa, da mesma forma que os acordos económicos poderão perder gás face a futuras negociações bilaterais de Londres com os parceiros dos 27.

Foi a própria primeira-ministra Theresa May que sublinhou esta segunda-feira: “Estamos no limiar de um momento fulcral para a Grã-Bretanha, agora que damos início a negociações que nos conduzirão a uma nova parceria com a Europa” e “ vamos aproveitar esta oportunidade para forjar uma Grã-Bretanha mais global”.
Londres quer tudo: fronteiras e mercado
A equação dos próximos dois anos beneficia, entretanto, da ausência de duas variáveis que não se colocam com Londres: a moeda única (o euro) e o Espaço Schengen, que prevê a livre circulação de pessoas e bens nos países da União europeia. Os britânicos nunca quiseram integrar estas peças fundamentais da estrutura comunitária na sua parceria.

Trata-se de um pormenor que, apesar de ignorado ao longo do tempo pelos restantes Estados-membros, recorda agora aos outros 27 como nestas mais de quatro décadas Londres sempre pretendeu retirar da União Europeia o melhor de dois mundos: o controlo total de fronteiras e o acesso ao mercado comum.



Imigrantes, expatriados ou orçamento são outras palavras substantivas de outros tantos dossiers de difícil decisão. A própria administração da União Europeia conta com um forte staff britânico imiscuído nas instituições que em Bruxelas e Estrasburgo fazem o edifício da UE. O que restará da presença britânica depois de colocado o lacre sobre as negociações? Para já, apenas uma certeza: a herança do Inglês como língua comunitária dos 27.

E Portugal, nós que constituímos com a Inglaterra uma aliança de 500 anos, a mais antiga do mundo. O lema que parece subsistir aqui é que “amigos, amigos, negócios à parte”. O primeiro-ministro António Costa já fez saber que as portas portuguesas estão abertas às empresas que quiserem continuar a negociar no espaço europeu sem os constrangimentos da saída: “Portugal pode ser uma excelente plataforma para empresas que estão instaladas na União Europeia e que não têm vontade de sair. Por isso, iremos criar uma unidade de missão com o objetivo específico de termos um quadro atrativo para a localização em Portugal de empresas que desejem manter-se na União Europeia e que, por força da legítima decisão dos cidadãos britânicos, não queiram ficar fora da União Europeia”. A partir deste anúncio os ingleses devem ter traduzido para a língua de Shakespeare dois ou três provérbios nada lisonjeadores para o parceiro milenar que somos nós.

Ou talvez não, talvez o comando britânico do Reino Unido não tenha tempo a perder com um pequeno país de praias aprazíveis. A grande dor de cabeça tem epicentro marcado em Edimburgo. Os escoceses já deixaram claro que não pretendem abandonar a União Europeia e estão a forçar um referendo nacional que Theresa May procura a todo o custo enfiar para debaixo do tapete. Com ventos idênticos a soprarem da Irlanda, a saída da União Europeia pode significar para Londres o desmoronar do bloco britânico.
“Uma parceria nova e entre iguais”
Quando em Janeiro Theresa May procurou elucidar a população britânica sobre as implicações do Brexit, revelando a sua visão do que deverá ser a “nova parceria estratégica” com a Europa, a primeira-ministra não desiludiu aqueles que a veem como uma líder dura, disposta a manter uma negociação inflexível nos pilares em que Londres tentará fincar os dois pés: recuperação da soberania e o controlo de fronteiras. Apesar das gravações que a revelaram uma primeira-ministra “desiludida” com os ingleses, a defender que a situação seria muito melhor se o Brexit não tivesse vencido a 23 de junho, apesar de toda essa amargura por uma situação que era vista como um cenário da ordem da abstração, a chefe do Executivo fez questão de sublinhar que sair da União Europeia significa de facto sair da União Europeia. E atrás desta ideia vem tudo o resto. Principalmente, isto: o Reino Unido volta a ter o controlo das suas fronteiras.

E, sem pretender renegar uma tradição milenar de um território cosmopolita ou esse desejo “de uma Grã-Bretanha global”, mostrou desde logo ao que vai quando se sentar à mesa com os 27: Londres não cederá à imposição dos pilares europeus de “livre circulação de bem, capitais, serviços e pessoas”.

“Vamos ter controlo sobre o número de pessoas vindas da UE, porque quando os números crescem o apoio público diminui, os serviços públicos ficam sob pressão e há uma pressão negativa sobre os salários”, explicou Theresa May. Deixou, no entanto, a porta aberta aos imigrantes qualificados.



Theresa May, dando a ideia de que preconiza um Brexit suave, avisou desde logo para que ninguém pense em punir Londres pela decisão de 23 de junho. O cartão de visita para as negociações? “Procurar uma parceria nova e entre iguais – entre um Reino Unido global e independente e os nossos amigos e aliados da União Europeia”.

“Vamos querer continuar a comprar os produtos europeus e a continuar a vender os nossos produtos à Europa. Vamos continuar a querer visitar a Europa e a receber a Europa”, reiterou.

“Vamos continuar a ser parceiros de confiança, aliados de boa vontade e amigos próximos. Queremos comprar os vossos produtos, vender-vos os nossos, fazer trocas comerciais convosco da forma mais livre possível e trabalhar com cada um para garantir que estamos mais seguros, mais protegidos e mais prósperos graças a uma amizade prolongada”.

No entanto, ao contrário do que vinha sendo apontado como uma direção possível para esta relação, a primeira-ministra britânica esclareceu que o Reino Unido não quer os modelos experimentados por outros países: “Não queremos ser membros parciais da União Europeia, nem ser membros associados da União Europeia, nem algo que nos deixe meio-dentro, meio-fora. Não pretendemos adotar um modelo já usado por outros países. Não pretendemos agarrar-nos a bocados do que temos enquanto membros quando estamos a sair”.

Fotografias: Hannah McKay, Facundo Arrizabalaga, Andy Rain, Jack Taylor - EPA