Brexit. Comissão Europeia propõe reduzir controlos e procedimentos alfandegários na Irlanda do Norte

por RTP
O comissário Maros Sefcovic apresentou o que considera ser um "pacote de soluções criativas para lidar com as consequências do Brexit", com o potencial para "ter verdadeiros resultados práticos" Olivier Hoslet/ EPA

A Comissão Europeia propôs simplificar as formalidades alfandegárias nas importações da Irlanda do Norte ao Reino Unido e reduzir os controlos nas importações de alimentos em 80 por cento, para tentar lidar com as consequências negativas do Brexit. O comissário responsável pelas relações com o Reino Unido desafiou o governo de Boris Johnson a "envolver-se numa negociação séria". Um porta-voz do Governo britânico já disse que as propostas serão estudadas "de forma séria e construtiva".

Apresentado pelo vice-presidente da Comissão Europeia responsável pelas relações com o Reino Unido, Maros Sefcovic, como “um compromisso com as pessoas da Irlanda do Norte”, o conjunto de medidas visa simplificar os procedimentos das alfândegas, reduzir os controlos dos alimentos e garantir o comércio dos medicamentos e aumentar a participação da Irlanda do Norte no diálogo.

Estas medidas são a proposta da Comissão Europeia, na sequência dos apelos do governo britânicos a uma renegociação séria do Acordo para a Saída do Reino Unido da EU, assinado no final de 2019. Um dos principais problemas neste acordo é o facto de a Irlanda do Norte – que é território britânico – continuar no mercado único europeu mesmo depois da saída do Reino Unido, por fazer fronteira com a República da Irlanda, que é um país membro da União Europeia.

Como resultado, passaram a existir controlos aduaneiros e documentação adicionais no porto de Belfast de mercadorias que chegam do Reino Unido, criando uma espécie de “fronteira” dentro do país.

Defendendo que a prioridade é garantir a paz do Acordo de Sexta-Feira Santa e manter a integridade do mercado único, Sefcovic sublinhou que teve em grande conta os relatos das dificuldades que ouviu, aquando da sua viagem à Irlanda do Norte, para desenhar as soluções propostas.

Soluções que, segundo Sefcovic, foram vistas “de todos os ângulos” e que resultam assim na proposta de “um modelo alternativo para implementação do protocolo”.
Redução dos controlos em 80 por cento
As importações de carne, produtos lácteos e frutos e vegetais frescos devem ser atualmente acompanhados de certificados de saúde, enquanto a carne processada, como as salsichas ou os hamburgeres estão proibidos, exceto se forem congelados.

Com a nova proposta, deixa de ser necessário um documento para cada produto, sendo apenas preciso um certificado que liste os diferentes produtos.
 
Neste novo cenário, os produtos de origem animal importados já não serão sujeitos ao mesmo nível de verificação. Em contrapartida, a Comissão Europeia propõe salvaguardas como a rotulagem e defende que os controlos que restam devem ser feitos adequadamente para proteger a integridade do mercado único.
Redução das formalidades alfandegárias a metade

Notando que as Pequenas e Médias Empresas podem beneficiar do novo esquema, o comissário europeu deu como exemplo a importação de peças automóveis da Grã-Bretanha por um concessionário de automóveis na Irlanda do Norte.

Na proposta da Comissão, o concessionário da Irlanda do Norte precisaria agora de apenas fornecer informações básicas, como o valor da fatura e a descrição da transação, para fins alfandegários, em vez de um abrangente conjunto de informações.

Sefcovic afirmou que tal vai reduzir os procedimentos alfandegária em mais da metade e que tal poderá beneficiar o futuro económico da região.

No entanto, seria importante ter acesso a bases de dados em tempo real, nota Sefcovic, que também é vice-presidente para as Relações Insterinstitucionais e Prospetiva.
Medicamentos continuam a ser vistoriados na Grã-Bretanha

Sobre o facto da Irlanda do Norte ter de seguir as regras do mercado único no que respeita aos medicamentos importados, Sefcovic disse ter “revirado as nossas regras para encontrar uma solução sólida”. Os revendedores britânicos vão continuar a fornecer a Irlanda do Norte e as funções regulatórias vão continuar a poder decorrer na Grã-Bretanha sem que seja necessário deslocar a infraestrutura para a Irlanda do Norte.

A Associação Britânica de Fabricantes de Genéricos notava que a necessidade de armazenamento extra, de testes de laboratório e dos especialistas técnicos iriam tornar o abastecimento da Irlanda do Norte inviável em muitos casos, podendo levar à retirada de 2.000 medicamentos.

A maior parte dos fármacos vendidos na Irlanda do Norte provém da Grã-Bretanha, sendo os genéricos os mais ameaçados devido às margens baixas, quando um período de carência expirar no final do ano.
Aumentar a participação da Irlanda do Norte
O vice-presidente da Comissão Europeia deu ainda conta da intenção de melhorar o diálogo com as autoridades, empresas e sociedade civil da Irlanda do Norte, com o intuito de tornar a aplicação do protocolo mais transparente.

A reivindicação sobre o Tribunal Europeu de Justiça fica por resolver

Instado pelos jornalistas britânicos em Bruxelas a comentar o ultimato do secretário de Estado para as Relações Europeias de que o novo acordo deveria ditar o fim da supervisão do Tribunal Europeu de Justiça, o comissário defende que este é um instrumento essencial para garantir o mercado único.

Espero começar um processo intenso de discussões e também ao nível político” e se o fizermos “poderemos começar um novo ano com uma agenda mais positiva para as relações entre a União Europeia e o Reino Unido”.

Sefcovic notou ainda que a primeira vez que ouviu a questão do Tribunal Europeu de Justiça referida como um entrave grave terá sido antes das férias de Verão, no relatório do governo britânico.

Downing Street vai estudar propostas de Bruxelas
O Governo britânico não perdeu tempo para reagir. Em Londres, um porta-voz disse que Downing Street vai estudar de “forma séria e construtiva” as propostas apresentadas em Bruxelas para resolver os problemas resultantes do ‘Brexit’ na Irlanda do Norte.

"O próximo passo deve ser negociações intensivas sobre os nossos dois conjuntos de propostas, conduzidas rapidamente, para determinar se há um terreno comum para encontrar uma solução”, disse o porta-voz, na senda de Maros Sefcovic, que aponta o final do ano como uma possibilidade para a implementação do novo acordo.

Na terça-feira, o secretário de Estado das Relações Europeias tinha dito que, se até novembro não fosse possível encontrar um consenso, o Reino Unido admitia acionar o artigo 16.º do Protocolo da Irlanda do Norte do Acordo de Saída da UE, que suspende partes do tratado.
Ministro britânico veio a Lisboa fazer pressão para alterações significativa
O secretário de Estado britânico para as Relações com a União Europeia David Frost deslocou-se propositadamente a Lisboa, “em nome da mais antiga aliança do Reino Unido”, para apresentar a visão de Londres sobre as alterações ao protocolo. Na residência do embaixador britânico, David Frost quis, uma vez mais, fazer pressão sobre a Comissão Europeia para alterar um protocolo que considera ter sido “feito à pressa” e fonte de problemas.

Existe um sentimento generalizado no Reino Unido de que a UE tentou usar a Irlanda do Norte para encorajar as forças políticas do Reino Unido a reverter o resultado do referendo ou, pelo menos, para nos manter estreitamente alinhados com a UE”, sublinhou Frost, insistindo na ideia de que o acordo “não está a resultar”.

Frost ameaça ativar o Artigo 16 do protocolo, que suspende partes do acordo em caso de desentendimento. “Lembrem-se de que é este Governo que governa a Irlanda do Norte, assim como o resto do Reino Unido. A Irlanda do Norte não é território da União Europeia. É nossa responsabilidade salvaguardar a paz e a prosperidade na Irlanda do Norte, e isso pode incluir o uso do Artigo 16.º, se necessário. Não seguiríamos este caminho gratuitamente ou com algum prazer particular”, avisou.

A teoria de que a União Europeia instrumentalizou a questão da Irlanda do Norte para manter o Reino Unido na união aduaneira após o Brexit é contrariada pelas revelações do chefe de gabinete da antiga primeira-ministra Theresa May.

"Acho que a preocupação deles era dupla. Uma que falaram muito em público, que era a solidariedade com a Irlanda, garantindo que não houvesse o regresso a uma fronteira física. A outra era (…) sobre a proteção da integridade do mercado único. Mas não acho que eles usaram a Irlanda do Norte para tentar nos manter alinhados”, afirmou Gavin Barwell.
 
Segundo o antigo chefe de gabinete, a questão é complexa e obriga a decisões da parte do Reino Unido: ou "permanece em algum tipo de cooperação aduaneira e alinhamento regulatório, ou existe uma fronteira entre a Irlanda do Norte e Irlanda, ou existe uma fronteira dentro do Reino Unido".

"Não há uma solução que faça com que isso desapareça. E é por isso que ainda hoje temos dificuldades”, observa Gavin Barwell, que critica a estratégia do Governo britânico de insistir em renegociar o Protocolo da Irlanda do Norte.

Já o antigo conselheiro do primeiro-ministro Dominic Cummings fez saber que nunca houve a intenção de cumprir o Protocolo da Irlanda, uma vez que Boris Johnson nem sequer tinha consciência das implicações do Acordo para a Saída do Reino Unido da EU, assinado no final de 2019.

"Não significa que o primeiro-ministro tenha mentido nas eleições de 2019, ele nunca teve a menor ideia do que significava aquele acordo que tinha assinado. Ele nunca percebeu o que significava deixar a união aduaneira até novembro de 2020", revelou Dominic Cummings, na rede social Twitter.

Cummings saiu ainda em defesa de David Frost, notando o cenário de instabilidade em que se move o secretário de Estado para as Relações Europeias.

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