Canadá. Desculpas papais por genocídio contra os indígenas não aplacaram polémicas

por RTP
Filippo Monteforte, Reuters

Os ecos da visita papal de 24 a 29 de julho ao Canadá continuam a fazer-se ver, ouvir e ler. Meios de comunicação católicos reflectem sobre a mensagem papal e deixam transparecer um tom crítico. Outros comentadores deixam um balanço francamente negativo.

Uma das vozes católicas a comentarem a visita papal é a de Sabrina Almeida, que admite ter esperado ansiosamente por "palavras de amor que começassem a sarar as feridas de séculos de agressão, de abuso e de marginalização por parte de pessoas em posições de poder".

Depois, contudo, Almeida anota que "mesmo uma pessoa não-indígena como eu ficou decepcionada pelo que faltou". Ela sublinha, nomeadamente, que "a missa papal em Edmonton errou completamente o alvo, ao não incorporar quaisquer elementos de cultura indígena no serviço litúrgico. A inclusão do latim, por outro lado, pareceu transportar muitos participantes a tempos passados (com dolorosas conotações), mais do que ajudá-los a seguirem em frente".

Com isto, acrescenta, perdeu-se "a oportunidade de realçar a tentativa da Igreja de ser verdadeiramente inclusiva para as pessoas indígenas ..., a oportunidade para reparar pecados antigos e viver a contrição".

Faltou também, sublinha ainda, "qualquer denúncia oficial da 'doutrina da descoberta', que legitimava o comportamento abusivo, a falta de reconhecimento do 'genocídio' nas escolas internas de administração católica e um plano para publicar documentos actualmente arquivados em Roma".

Almeida nota que houve finalmente uma observação do papa admitindo a existência de um "genocídio" e admitindo que os tinha ouvido os relatos sobre os sofrimentos infligidos aos indígenas com a sensação de levar uma bofetada. Mas lamenta que estas afirmações espontâneas do pontífice tenham surgido à margem do processo oficial de conversações com a comunidade indígena, e portanto sem a dignidade que corresponderia à importância do que estava a ser admitido em vão de escada.

Duas outras personalidade católicas, Meredith Dawson e Nathan Turowsky, pronunciam-se em sentido semelhante, embora começando por registar que "nativos americanos mais jovens muitas vezes têm uma percepção extremamente negativa de uma forma quase maniqueísta".

Também esta dupla de autores põe em causa o silêncio papal sobre a "doutrina da descoberta", lembrando que esta consistiu num conceito "caído de páraquedas no direito internacional a partir de justificações usadas pelas monarquias cristãs europeias para colonizar terras fora da Europa".

Por esse motivo, afirmam também, é compreensível que "a discussão online em muitos círculos indígenas americanos se tenha concentrado nessa 'doutrina' como o ponto chave que queriam ver abordado pelo papa Francisco". Ora, o silêncio do papa sobre o tema, apesar das várias atenuantes que se lhe podem encontrar, não deixa de ser "desconcertante", segundo os dois autores.

Um outro aspecto que ambos consideram deficitário, nesta visita apesar de tudo vista como bem sucedida, é o facto de o papa não ter estabelecido qualquer relação entre as escolas internas e os abusos sexuais, "apesar de os abusos sexuais terem sido explicitamente referidos pela Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá entre as agressões pelas quais queriam que a Igreja apresentasse desculpas".

Enfim, um crítico laico da visita papal, o activista ambientalista Michael Nabert, é expectavelmente o mais implacável nas suas observações. Ele começa por lembrar que o tema da visita eram as escolas internas do Canadá que "arrancavam as crianças indígenas às suas famílias para colocá-las em 'gulags' educacionais em que eram castigadas por falarem a sua própria língua ou por usarem os seus nomes indígenas e em que eram doutrinadas para se assimilarem à cultura dos colonizadores" - tudo o que, recorda também, assenta como uma luva à definição de genocídio.

Nabert recorda também que foram localizadas até agora 1800 sepulturas anónimas de crianças maltratadas nesse tipo de escolas, que se mantiveram em funcionamento até 2008, e que muitas mais sepulturas poderão nunca vir a ser localizadas. As escolas eram financiadas pelo erário público e, na sua esmagadora maioria, administradas pela Igreja.

Em 2005, quando começou a ser demasiado conhecido o genocídio cometido, "as igrejas católicas do Canadá prometeram aos sobreviventes 25 milhões de dólares a título de ressarcimento parcial. Dezassete anos depois, isso ainda não aconteceu. Chorando-se da sua pobreza, a Igreja diz que o máximo que conseguiu amealhar para as vítimas (...) foi 3,9 milhões [de dólares canadianos], menos de um sexto do que a insignificância que lhes tinha prometido".

E contrasta a mesquinhez do pagamento com a largueza de outras despesas: "Durante o mesmo período (...) a Igreja católica do Canadá teve 300 milhões para melhoramentos e construção de catedrais (...) O Cristo bíblico, se alguma vez existiu, sentir-se-ia profundamente revoltado (...) É como se Bill Gates dissesse que não tem dinheiro para pagar um bilhete no parque de estacionamento".

A isto acrescenta Nabert, tal como os comentadores católicos da visita, que o papa nada disse sobre a "doutrina da descoberta". Mais concretamente, diz ele que o papa "lamenta profundamente as acções de 'muitos membros da Igreja', mas não pede desculpa pelas acções da própria Igreja. Estas atrocidades foram cometidas em nome da Doutrina da Descoberta, da Igreja católica, que fornece uma justificação religiosa para a colonização e a retirada de terra e recursos a qualquer um que não seja cristão".
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