Carlos, o huissier português em Bruxelas

Trocou o Porto por Bruxelas. Carlos Cordeiro é um dos trinta huissiers que trabalham no parlamento da União Europeia.

Há no Parlamento Europeu quem mantenha a ordem nos debates. Sem tomar protagonismo ou influenciar decisões, os “contínuos de sessão” guardam a entrada no plenário, acompanham convidados, intervêm quando a tensão aumenta no hemiciclo.


Não passam despercebidos. Embora um dos requisitos para o serviço seja a discrição, o uniforme de fraque e laço sinaliza o je ne sais quois de séculos passados. Em inglês dão pelo nome de ushers, em francês huissiers. É uma herança francófona, em parte porque o primeiro chefe de protocolo do Parlamento Europeu era francês. 



O que faz um huissier?

Encaminham eurodeputados para o lugar, asseguram que tudo está pronto para começar. Por vezes são vistos a acalmar membros do parlamento ou atrás de figuras de Estado.

Como adorno de colete levam uma corrente à cintura, presa ao centro num botão. É uma alusão à função original dos huissiers: abrir e fechar portas. O fraque, de ascendência britânica, é feito à medida para cada um dos 30 funcionários que trabalha no hemiciclo. 


Carlos Cordeiro é dos mais antigos. Português, natural do Porto, chegou ao Parlamento Europeu em 1990. O vestuário clássico ajuda-o a assumir uma figura imparcial: “Quando visto o meu casaco costumo dizer: agora perdi a liberdade”. 
“O meu objetivo é estar ao serviço do Parlamento. Não quero mais nada. Basta."

Perde a liberdade porque o cargo que ocupa exige de si uma imagem. “Estou ao serviço, portanto tenho que ter um comportamento exemplar”. Nesse campo, o fraque ajuda. “Não me acrescenta nada mas dá-me a satisfação de fazer algo que é reconhecido por outros”.

Juiz ou confrade? 
A mística da profissão impressiona, em parte porque não é usual no século XXI encontrar figuras vestidas para um casamento de 1820. Muito menos nos corredores do Parlamento Europeu, entre eurodeputados com pressa ou visitantes de olhar perdido. 

A surpresa leva a interpelações no corredor. Como a vez em que Carlos ouviu, a meio de uma visita: “Faz parte de uma confraria? Vai haver uma prova de vinhos?” 

Outras associações são frequentes. Como a de um juiz, de peruca encaracolada e batina comprida. Do outro lado, uma gargalhada: “Nós temos uma enorme vantagem. Não julgamos, estamos aqui para executar, para estarmos presentes, mas depois para nos retirarmos”.

É essa a característica central. “Nenhum funcionário é ator, os atores são os políticos”. Confessa, numa expressão muito portuguesa, que é preciso "saber estar". O equilíbrio entre uma “abordagem cordial mas respeitosa”. Levará anos a afinar? A resposta é perentória. “Acontece de forma muito normal”. 

A chegada por acaso 

Talvez tenha sido a aptidão natural de Carlos para ser anfitrião que o levou ao “enorme acaso” de ser admitido no Parlamento Europeu. 

A oportunidade apareceu num jantar. Carlos foi respondendo às questões que um amigo lhe colocava e que, sem saber, serviram para preencher "o formulário de inscrição para o concurso.” Disse-lhe que tinha até às 6 da tarde do dia seguinte para enviar o formulário. Chegou aos correios do Carvalhido, no Porto, às 6 menos 10. 

Funcionário do Ministério da Agricultura, casado e com dois filhos pequenos, Carlos nunca tinha pensado emigrar. Mas “as oportunidades surgem e temos que as agarrar”. 

“Eu nunca premeditei. Acho que temos que ter a capacidade de nos adaptarmos à medida que as circunstâncias da nossa vida se vão alterando. E a nossa vida não é estática. Não é estática profissionalmente e não é estática pessoalmente.”

A carta endereçada ao número 60 da Rua Wiertz, em Bruxelas, deu início a um processo que durou dois anos. Desde testes de cultura geral a um período experimental na Bélgica, Carlos mudou-se definitivamente em 1993. 

O primeiro impacto foi “muito bom”. A entrada nos bastidores do poder europeu deu-lhe “outra visão das coisas. Aqui conseguimos perceber a utilidade do serviço público”.

Cruza-se diariamente com grupos políticos, por vezes em clima de tensão, mas garante que o profissionalismo é transversal. Carlos Cordeiro pode não concordar com aquilo que dizem no plenário mas não deixa que interfira no seu trabalho. As opiniões pessoais ficam no cacifo, nos corredores do parlamento é a voz da imparcialidade.
No centro da Europa

O Parlamento Europeu reúne em Estrasburgo uma semana por mês, durante pelo menos 10 meses por ano, o que equivale a um mínimo de 300 sessões plenárias. Este português já assisitiu a mais de 1200 dias de hemiciclo desde que iniciou a carreira. Por lá passaram Dalai Lama, Papa Francisco e Yasser Arafat. Algumas das várias visitas de altas figuras internacionais que Carlos Cordeiro acompanhou.
 

Trocou o Porto por Bruxelas. Carlos Cordeiro é "contínuo parlamentar" no Parlamento Europeu.



“É uma honra ter recebido os nossos Presidentes da República”, confessa ao relatar as visitas de Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. “Marcou-me quer o discurso de um, quer o discurso de outro. Depois, a simpatia."

Mas o seu álbum de recordações do Parlamento Europeu não guarda só momentos felizes. O funeral de Helmut Kohl, em 2017, teve “uma dimensão simbólica enorme”. Antigo chanceler da Alemanha, Kohl era europeísta convicto, considerado por muitos o arquitecto da união alemã. A cerimónia fúnebre teve lugar no hemiciclo de Estrasburgo. Carlos Cordeiro não ficou indiferente. “É impressionante a emoção, a comoção, o sentido de sermos europeus”. 

E depois, os pequenos momentos que ficam. Como a primeira vez que viu neve. No dia 1 de fevereiro de 1990, o primeiro dia de trabalho: “Antes de entrar no Parlamento quis sentir a neve e parei. Parei para sentir. E depois entrei, pela primeira vez.”