Comunidade quilombola celebra negritude em evento paralelo à maior feira literária do Brasil

por Lusa

Paraty, Brasil, 14 jul 2019 (Lusa) - Descendestes de africanos que se refugiaram em pequenas comunidades chamadas quilombos, durante o período colonial brasileiro, realizam a Flip Preta, um evento paralelo à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que encerra hoje.

Planeado para dar representatividade à cultura ancestral negra que sobrevive dentro do Quilombo do Campinho, localizado a poucos quilómetros do centro de Paraty, no estado brasileiro do Rio de Janeiro, a Flip Preta acontece numa comunidade de 600 pessoas fundada no século XIX, em resistência à escravatura, e cujos membros não se sentiam representados ou inseridos na programação da Flip.

A reportagem da Lusa esteve naquele local e observou construções de taipa e pau a pique, usadas para processar artesanalmente produtos como a farinha, ao lado casas de tijolos e antenas parabólicas, compondo aquela comunidade que uniu o modo de vida tradicional com a modernidade.

Durante quatro dias, o Quilombo do Campinho recebeu apresentações de danças, oficinas de artesanato e percussão, debates, lançamentos de livros e espetáculos musicais que incluíram a apresentação da Orquestra Mundana Refugi, fundada na cidade de São Paulo por refugiados de várias partes do mundo.

"A Flip Preta é um evento literário e cultural realizado totalmente pela comunidade, pela nossa associação local como um contraponto à Flip daqui de Paraty. A Flip não trabalha as comunidades que existem, é feita para as pessoas quem vêm de fora. Temos indígenas, quilombolas, caiçaras [comunidades que de pescadores] e não nos sentimos representados naquele evento", disse Daniele Elias Santos, uma das organizadoras.

Elias também explicou que o Quilombo do Campinho é uma das poucas comunidades que conseguiu o titulo de propriedade da terra em que está estabelecido, facto que depende de aprovação governamental.

"O Quilombo é um pedacinho da África onde congregamos a ideia de território. Pegamos a matéria prima da terra para fazer nosso artesanato, dividimos os cuidados com as crianças. Somos um coletivo que trabalha artesanato, cultura e história", acrescentou.

Outra moradora do quilombo, Lucimar Ferreira Paulo, fez questão de reafirmar que a Flip Preta nasceu de um sentimento de exclusão da comunidade em relação a Flip, organizada e mantida por uma associação com a ajuda e patrocínio de grandes empresas e editoras.

"As nossas questões temáticas não são tratadas na Flip. As pessoas de Paraty não participam desta festa literária, que entendemos ser feita para a elite. A importância da Flip Preta é que nela temos a oportunidade de mostrar um outro lado, os escritores negros com quem nos identificamos e que falam sobre a nossa realidade", disse.

"Ser quilombola hoje no Brasil é ser resistência. Estamos vivendo um momento muito difícil onde o Governo não nos reconhece. Somos resistentes e estamos dispostos a lutar pelos nossos direitos", completou.

Eliane Arouca, psicóloga de 52 anos, contou que viajou da cidade de Ubatura até Paraty para prestigiar a festa literária do quilombo, depois de ter tomado conhecimento do evento, por intermédio de um grupo de amigos.

"Achei que o evento está com um clima aconchegante, familiar. Estamos vivendo um momento, hoje, onde é preciso celebrar a raiz do Brasil. Preferi vir ao quilombo e não ir até à Flip [realizada no centro de Paraty ]. Temos de começar a prestigiar estes espaços para aprender a conviver melhor com as nossas diferenças", frisou à Lusa.

O artista Gê de Lima foi outro visitante da Flip Preta, chegado da cidade de São Paulo, que decidiu ficar no quilombo.

"Achei incrível vir aqui ouvir sobre nossas vivências, sobre a negritude, e celebrar a importância que é este evento, principalmente para nós que somos pessoas pretas e fomos limitados em muitas coisas. É um momento de fortalecimento", concluiu.

A Flip Preta está na sua primeira edição e é um evento paralelo à festa literária internacional realizada anualmente em Paraty que reúne escritores, músicos, investigadores, professores e intelectuais de diferentes partes do mundo e áreas da cultura.

A edição de 2019 dos dois eventos termina hoje.

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