Covid-19. As críticas aos governos pela forma como lidaram com a pandemia

por Joana Raposo Santos - RTP
O novo coronavírus já infetou mais de um milhão e 300 mil pessoas em todo o mundo, sendo a Europa o continente mais afetado. Foto: Carlos Barria - Reuters

Com a pandemia de Covid-19 espalhada por todo o globo, muitas nações enfrentam duras críticas pelo modo como têm lidado com a crise. Figuras públicas de vários países não têm hesitado em condenar os seus governantes, desde os Estados Unidos à Índia, passando pela Europa. "Nada foi feito para travar a crise", "a falta de solidariedade é um perigo mortal" ou "o Governo é incompetente" são algumas das críticas que atravessam os continentes.

“Esta pandemia podia ter sido evitada, havia informação suficiente para evitá-la”, defendeu o linguista e filósofo norte-americano Noam Chomsky, em entrevista ao ativista croata Srecko Horvat.

Chomsky, de 91 anos, frisou que “em outubro de 2019, ainda antes do surto, houve nos Estados Unidos uma simulação em larga escala” de uma pandemia global. O chamado “Evento 201” foi organizado pelo departamento de Saúde Pública da Universidade John Hopkins, instituição que agora faz a contagem de casos de Covid-19 a nível global.

Apesar desta preparação, “nada foi feito” para evitar a pandemia que viria a atingir os EUA pouco tempo depois, considerou o linguista. “A crise foi então agravada pelos sistemas políticos, que não prestaram atenção à informação de que dispunham”.

“Sabia-se há muito tempo que o aparecimento de pandemias é muito provável e isso foi subestimado”, afirmou. “Sabia-se perfeitamente que era provável a ocorrência de modificações do coronavírus que provocou a epidemia de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) há 15 anos”.


“A 31 de dezembro [de 2019], a China informou a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o aparecimento de sintomas semelhantes aos da gripe, mas sem origens conhecidas. Uma semana depois, cientistas chineses identificaram o novo coronavírus e divulgaram essa informação ao mundo. Nessa altura, virologistas e outros especialistas que leram os relatórios da OMS sabiam da existência deste vírus e como lidar com o mesmo. Fizeram alguma coisa? Bem, alguns fizeram”, lamentou Chomsky.

O linguista relembrou que “a China, a Coreia do Sul, Taiwan e Singapura começaram a tomar medidas, e parecem ter conseguido conter pelo menos a primeira vaga deste surto”. No entanto, o Ocidente parece não ter lidado tão bem com a crise.

“Num dia Donald Trump diz que não há nenhuma crise e que é apenas uma gripe. No dia seguinte diz que é uma crise terrível e que o soube desde o início. Depois diz que o país tem de retomar a atividade económica porque tem eleições para vencer. A ideia de que o mundo está em mãos destas é chocante”.

Quanto à Europa, “a Alemanha tinha capacidade para realizar diagnósticos extra e e agiu de forma altamente egoísta, ajudando-se a si própria e não aos outros. Outros países decidiram ignorar a situação. Um dos piores foi o Reino Unido e o pior de todos os Estados Unidos”, constatou Chomsky.
“Um perigo mortal para a União Europeia”
Ainda em relação à Europa, há quem tema que a crise de Covid-19 seja mais destrutiva do que desafios como o da crise migratória, o Brexit ou os resgates económicos da Zona Euro. É o caso de Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia, para quem a falta de solidariedade representa “um perigo mortal para a UE”.

Retirado da vida política, Jacques Delors, atualmente com 94 anos, raramente faz declarações públicas. No entanto, decidiu quebrar o silêncio para alertar contra “o clima que parece reinar entre os chefes de Estado e de Governo” durante esta pandemia, considerando necessária uma maior união de modo a que se consiga ultrapassar a crise.

"O micróbio está de volta", acrescentou Delors, numa altura em que a Europa continua a ser o continente mais afetado pela pandemia.
Governo de Boris Johnson “é incompetente”
O Reino Unido tem sido um dos mais criticados pela forma como decidiu lidar com o novo coronavírus. Boris Johnson, que neste momento se encontra internado nos cuidados intensivos depois de ter sido infetado com Covid-19, foi acusado de demorar demasiado a adotar medidas que travassem o surto.

Em entrevista ao diário espanhol El Pais, o cineasta britânico Ken Loach disse viver num país cujo Governo é incompetente. “[No início] não houve planos de contingência, havia médicos e enfermeiros a trabalharem sem a proteção adequada, havia cuidadores e idosos a serem infetados”, frisou.

“Sabiam que o vírus estava a caminho e não se anteciparam. Posso entender governos como o espanhol ou o italiano, porque foram os primeiros a enfrentar a Covid-19 na Europa, mas o britânico?”, questionou. “Aqui Boris Johnson priorizou a salvação da economia e não a dos cidadãos. É um fracasso estrondoso”.

“A situação assemelha-se ao início da Primeira Guerra Mundial, quando centenas de milhares de jovens soldados foram enviados para morrer, tratados comõ burros. Hoje, Johnson trata os profissionais da saúde da mesma forma: como burros”, criticou.
Na Índia foge-se da fome e não da Covid-19
Mas não só o Ocidente está a ser criticado pela forma como lidou com a pandemia. Num artigo de opinião publicado pelo Financial Times, a autora e ativista indiana Arundhati Roy descreve um cenário caótico na Índia e repudia as decisões do primeiro-ministro Narendra Modi.

O país registou o primeiro caso de Covid-19 a 30 de janeiro, mas com a agenda do Governo ocupada com as visitas oficiais de Donald Trump e Jair Bolsonaro, e perante um pequeno número de infeções, as medidas para travar o surto na Índia não foram tomadas de imediato. Apenas a 24 de março o primeiro-ministro Modi decidiu decretar a quarentena obrigatória em todo o país.

Para Arundhati Roy, o anúncio – com apenas quatro horas de antecedência – do encerramento de estabelecimentos e da proibição da circulação em transportes públicos ou privados “funcionou como uma experiência química que repentinamente trouxe à luz coisas escondidas”.

“Muitos foram despedidos ou despejados. Milhões de pessoas pobres, com fome e sede, velhos e novos, homens e mulheres, crianças, doentes, cegos, deficientes, sem sítio para onde ir e sem transportes para se deslocarem, começaram uma longa caminhada de regresso às suas aldeias”, explicou. “Alguns morreram pelo caminho”.

“Sabiam que o regresso a casa provavelmente apenas abrandaria a fome. Talvez até soubessem que podiam estar infetados com o vírus e que o podiam transmitir às suas famílias, aos seus pais e avós, mas precisavam desesperadamente de alguma familiaridade, abrigo e dignidade, assim como comida”.

“Enquanto caminhavam, alguns foram brutalmente espancados e humilhados pela polícia, responsável por fazer cumprir a quarentena”, escreveu Roy. “Um grupo de pessoas chegou a ser pulverizado com químicos desinfetantes”.
Cenário “bíblico”
“Alguns dias depois, com medo que esta migração espalhasse o vírus pelas aldeias, o Governo indiano encerrou as fronteiras entre Estados até para quem viajava a pé. Pessoas que caminhavam há dias foram paradas e forçadas a regressar às cidades que tinham sido forçadas a abandonar”.

A autora descreveu como “bíblico” o cenário que observou na cidade indiana de Ghazipur. “Ou talvez não. A Bíblia não poderia descrever números como estes”, lamentou. “A quarentena para forçar o distanciamento social resultou no oposto: compressão física a uma escala impensável”.

Arundhati Roy acredita que “a crise da Covid-19 ainda pode estar para chegar” e que, se tal acontecer, “podemos ter a certeza de que será tratada de acordo com todos os já existentes preconceitos predominantes da religião, casta e classes”.

Até ao momento, a Índia regista mais de quatro mil casos do novo coronavírus. No entanto, “estes números não são fiáveis pois baseiam-se em muito poucos testes. As opiniões dos peritos dividem-se. Alguns preveem milhões de casos. Outros pensam que serão menos. O que sabemos é que a corrida aos hospitais ainda não começou”.
África precisa de mais do que “boas intenções”
No continente africano, há quem considere fundamental a ajuda externa para que se consiga ultrapassar a pandemia. Em entrevista à estação France 24 esta terça-feira, Moussa Faki Mahamat, presidente da Comissão da União Africana, afirmou que este é “um desafio internacional que exige uma resposta internacional”.

O diplomata do Chade pediu à comunidade internacional que vá além das “boas intenções” e que dê apoio a África, estimando que atualmente sejam necessários entre 100 a 150 mil milhões de dólares para lidar com a pandemia nesse continente, onde a maioria dos sistemas de saúde são frágeis.

“O continente africano precisa de apoio imediato a nível de liquidez para conseguir, primeiro, lidar com esta crise do ponto de vista da saúde, e depois lidar com todas as necessidades humanitárias que surgirão num futuro próximo. Há muitos refugiados e pessoas deslocadas por todo o nosso continente, portanto os Estados precisam de um apoio considerável e precisam dele agora”, explicou.

Faki Mahamat disse ainda esperar que a pandemia “sirva como um hino ao multilateralismo e à solidariedade” e explicou que o isolamento domiciliário generalizado em África representa uma solução muito difícil de implementar devido a diferenças “sociais, económicas e até culturais”.

c/ agências
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