Covid-19. Milhares de chineses esperam horas em filas para receber vacinas ainda em ensaios

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Thomas Peter - Reuters

Na China, pelo menos quatro vacinas estão já numa fase avançada dos ensaios. Apesar de nenhuma ter recebido ainda luz verde, as autoridades chinesas têm estado já a administrar algumas das vacinas a centenas de milhares de pessoas ao abrigo de uma política de uso de emergência. Grande parte da população mostra-se tranquila e confiante na segurança destas vacinas, mas os especialistas alertam que os riscos superam os benefícios.

Em julho, a China autorizou o uso de emergência de três vacinas desenvolvidas por empresas chinesas (Sinovac e Sinopharm) a trabalhadores essenciais, como profissionais de saúde, e a pessoas incluídas nos grupos de alto risco de infeção por Covid-19. O uso de emergência destas vacinas na China foi aprovado e recebeu o apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS) após uma rigorosa deliberação. A OMS pressupõe a distribuição de vacinas ainda em estudo durante emergências de saúde pública, como a pandemia de Covid-19, mas sob uma série de requisitos e regras.

No entanto, desde julho, a China tem alargado cada vez mais o grupo de pessoas a quem as vacinas experimentais são administradas, apesar de nenhuma ter sido oficialmente aprovada e nem ter cumprido os testes necessários para assegurar a sua eficácia e segurança. O grupo passou também a incluir funcionários de empresas do setor público que tenham de viajar para o estrangeiro em trabalho, políticos e executivos. Testemunhas descrevem filas intermináveis em hospitais por parte de pessoas que procuram receber uma dose da injeção e admitem que as vacinas estão a ser disponibilizadas a qualquer um que esteja disposto a pagar cerca de 350 dólares por duas doses.

Especialistas de todo o mundo alertam, porém, que os riscos superam os benefícios
e é, por isso, crucial que as vacinas sejam administradas à população apenas quando todas as fases dos ensaios estiverem concluídas e os resultados forem analisados por autoridades nacionais e internacionais.

A preocupação por parte das autoridades e especialistas em saúde não parece, porém, ser partilhada pela população chinesa, que tem procurado em massa estas vacinas. Tal como descreve o New York Times, a campanha de vacinação na China tem corrido surpreendentemente bem. Na cidade chinesa de Yiwu, por exemplo, as 500 doses de vacinas disponibilizadas foram administradas na totalidade em apenas poucas horas.

Ethan Zhang, de nacionalidade chinesa, trabalha na Costa do Marfim e decidiu participar nesta campanha em Yiwu. Depois de uma espera de quatro horas no hospital, Zhang conseguiu ser vacinado e expressou pouca preocupação pelo facto de a vacina que recebeu estar ainda em fase de testes.

“Sinto-me mais aliviado agora que tenho proteção”, disse Zhang a New York Times. “Desde que começaram a administrá-la a algumas pessoas para uso de emergência, isso demonstra que há uma certa garantia”, acrescentou.
“Esta vacina faria mais bem do que mal”
Esta grande procura está a preocupar o Governo chinês e as empresas responsáveis pela produção de vacinas para a Covid-19. Temem que venham a ter dificuldades na futura distribuição, tanto dentro da própria China, como no exterior, para aqueles países que já encomendaram doses das vacinas.

Wendy Zhang, uma médica chinesa de 26 anos, afirma que teve de esperar 57 dias para receber a segunda dose da vacina, dado que estavam esgotadas. Ao New York Times, a jovem médica garantiu que não teve nenhuma reação adversa após a vacinação, levando-a a defender que “não existe margem para dúvidas sobre a segurança da vacina desenvolvida pela China”.

A China também está a disponibilizar vacinas experimentais a estudantes que vão estudar para o exterior
. Eden Huang, um estudante de 19 anos que chegou recentemente a Amesterdão, tentou por quatro vezes inscrever-se quando a Sinopharm anunciou que estava a permitir que os alunos assinalassem o seu interesse em receber uma vacina.

“Estou muito ansioso”, disse Huang ao New York Times. “Os Governos europeus não levam a Covid-19 tão a sério como o nosso Governo chinês”, acrescentou. O jovem estudante disse ainda não estar preocupado com quaisquer problemas de segurança da vacina, citando relatos de que as vacinas foram testadas em mais de 60 mil pessoas. “Esta vacina faria mais bem do que mal”, afirmou Huang.

Para aqueles que, como Huang, têm menos sorte em inscrever-se nas campanhas de vacinação, existe sempre a hipótese de comprar a revendedores que se têm aproveitado desta grande procura por vacinas para cobrar entre 600 a 1.500 dólares por uma marcação.
Formulários de consentimento não divulgam “com clareza” os riscos
Uma vez que as vacinas ainda não foram aprovadas, a sua injeção envolve grandes riscos. Para além de as pessoas que receberam a vacina correrem o risco de desenvolver sintomas secundários graves, podem também ser impedidas de, no futuro, receberem uma vacina já aprovada cientificamente porque já foram injetados com outra.

Por sua vez, estes potenciais riscos parecem não estar a ser divulgados na China. O New York Times teve acesso a algumas das cópias dos formulários de consentimento de vacinação que os voluntários recebem e observou que em nenhum documento era especificado que a vacina em causa está ainda em fase experimental.

“Esses tipos de riscos não estão a ser divulgados com clareza”
, disse Yanzhong Huang, investigador de saúde global no Conselho dos Negócios Estrangeiros, nos EUA, e especialista em saúde na China.

Para além disso, os especialistas alertam que as doses nem sempre estão a ser administradas da forma correta. Ethan Zhang, por exemplo, recebeu duas doses da vacina a 26 de setembro, uma em cada braço. No entanto, as duas doses deveriam ter sido administradas com um intervalo de 14 ou 28 dias. Ao New York Times, Zhang admitiu que estava com pressa de viajar e não queria ter de voltar a Pequim para receber a outra dose.

“O país diz que esta vacina está Ok, por isso eu acho que é melhor apenas tomá-la”, disse Zhang.

A China, por sua vez, justifica a distribuição das vacinas ainda em ensaios clínicos à sua população com o risco de um ressurgimento da pandemia no país e na ausência de efeitos secundários significativos até ao momento
. Em meados de agosto, um oficial de saúde avançou que estavam a considerar expandir o programa de uso de emergência para prevenir eventuais surtos de Covid-19 durante o outono e inverno.

Nos últimos meses, a China tem registados números de novos casos muito inferiores àqueles que têm sido observados no resto do mundo, principalmente na Europa, que está no epicentro da segunda vaga da epidemia. No entanto, o vírus SARS-CoV-2 ainda está presente na China, que enfrenta agora uma maior ameaça por parte do exterior. Nos últimos dias, o país onde a Covid-19 surgiu tem registado apenas novos casos importados. Nas últimas 24 horas, o país somou oito novos casos, todos oriundos do exterior. Desde o início da pandemia, a China registou 86.346 infetados, dos quais 81.338 recuperaram da doença.

Apesar de ainda não existir nenhuma vacina aprovada e pronta para ser administrada, vários ensaios clínicos estão agora nas fases finais e algumas farmacêuticas, como a Pfizer e a Moderna, anunciaram recentemente níveis de eficácia das vacinas acima dos 90 por cento. No entanto, estes são ainda resultados provisórios e especialistas pedem cautela na análise destes números.
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