E depois da vacina? Hesitação perante imunização pode comprometer combate à Covid-19

por Andreia Martins - RTP
Um protesto anti-vacinação em Londres, Reino Unido, a 16 de maio. "Não à vacinação obrigatória. Liberdade de escolha", lê-se no cartaz. John Sibley - Reuters

Vários grupos anti-vacinação estão a tentar aproveitar a atual crise para semear a dúvida e a resistência de certos grupos à imunização. Mas de acordo com a Organização Mundial de Saúde a situação já representava uma séria ameaça global ainda antes da pandemia. Em Portugal, o número de vacinas administradas em maio caiu mais de 40 por cento.

Numa altura em que vários países e laboratórios tentam sofregamente alcançar e fabricar o antídoto contra o novo coronavírus, há um movimento inesperado a tentar rentabilizar com a crise sanitária global dos últimos meses. 

Pensar-se-ia até que este mesmo movimento perdesse fôlego ou mudasse de ideias, mas o contrário acontece para estes grupos de ativistas que olham para a realidade atual como uma confirmação paradoxal das suas crenças e certezas. Ainda que a percentagem destes ativistas seja pouco significativa, o perigo está em conseguirem espalhar e gerar a desconfiança no público em geral, por exemplo através da internet e das redes sociais.

Já em crise anteriores, como com o Zika ou a gripe A, as dúvidas e incertezas permitiram que que este tipo de movimentos pudesse crescer. A apreensão e a insegurança aumenta a predisposição da população para acolher teorias da conspiração e os grupos de ativistas aproveitam esse terreno fértil para semear a dúvida.

A resistência a uma potencial vacina poderia até colocar em causa a imunidade de grupo – cerca de 70 por cento da população - contra o novo coronavírus. De acordo com um estudo publicado na revista Lancet, 26 por cento dos franceses não estariam dispostos a tomar a vacina se esta estivesse disponível.

Um outro estudo da Universidade de Cambridge estima que 12 por cento da população do Reino Unido recusaria a vacina e 18 por cento tentaria impedir que membros da família ou amigos fossem imunizados. Nos Estados Unidos, um quarto da população não teria interesse na vacinação, rejeição que chega aos 34 por cento entre eleitores do Partido Republicano, de acordo com o Pew Research Center.

Na semana passada, uma sondagem publicada pela Associated Press revelava que apenas metade dos norte-americanos estaria disponível a receber a vacina contra o coronavírus se esta já estivesse disponível, enquanto 31 por cento assumia incerteza neste ponto.

Em declarações ao jornal El País, o sociólogo Josep Lobera considera que a situação atual vai levar ao crescimento dos grupos anti-vacinas. “Ainda temos tempo para fazer as coisas bem, mas agora é mais difícil do que numa situação normal. (…) Assim que tivermos uma vacina, haverá campanhas ainda mais fortes e com mais repercussões”, acrescenta o sociólogo da Universidade Autónoma de Madrid, autor de um estudo sobre o sentimento anti-vacinas e a desconfiança face à medicina convencional em Espanha. ´

Na era das fake news, o sociólogo sublinha que as autoridades devem ser transparentes e facultar todas as informações sobre o processo de desenvolvimento da vacina, reconhecendo que existem pressões e interesses comerciais no caminho até ao resultado final.


É que mesmo em países onde o movimento anti-vacinação não colhe tanto sucesso, a situação vivida nos últimos meses poderá ter fomentado a desconfiança. Por exemplo, em Espanha, apenas 6 por cento da população acredita que os riscos das vacinas infantis superam os benefícios. Mas perante a Covid-19, as crenças e as conspirações têm muito mais terreno de desenvolvimento: cerca de um terço dos espanhóis acreditava, no início de abril, que o vírus tinha sido criado num laboratório e 12 por cento admitiam que as farmacêuticas estariam a especular sobre uma vacina já desenvolvida.

Um estudo publicado na revista Nature na semana passada evidenciava que as crises de saúde são momentos privilegiados para impulsionar a agenda anti-vacinação. Nos Estados Unidos, estes ativistas estiveram particularmente ativos no Facebook durante os surtos de sarampo que ocorreram no país em 2019.
A ligação ao populismo

Em Itália, outro dos países europeus mais afetados pela Covid-19, um grupo denominado “coletes laranja” tem protestado contra o que considera ser um aproveitamento da situação por parte das indústrias farmacêuticas.

Vestidos com coletes de automóvel laranja, alguns destes ativistas clamam nos protestos que a pandemia “nunca existiu” e que o Governo aproveitou os últimos meses de restrições para se reforçar no poder. No protesto do último sábado desincentivaram o uso de máscaras e ignoraram as regras do distanciamento social.

“Existe um núcleo comum entre o pensamento anti-vacinas e algumas posições políticas extremas, associadas à ideia de que as elites não cuidam de nós”, considera Josep Lobera, em declarações ao El País, estabelecendo a ligação entre estes ativistas e o populismo.

No ano passado, a Organização Mundial de Saúde considerou que a hesitação face às vacinas e o movimento de rejeição da imunização constituía uma das principais ameaças à saúde. A rejeição de vacinação quando existe possibilidade de imunizar “ameaça reverter os progressos alcançados no combate a doenças evitáveis com vacinas”, admitia a OMS em 2018.

“A vacinação é uma das formas mais económicas de evitar doenças. Atualmente evita entre dois a três milhões de mortes por ano, e mais 1,5 milhões podiam ser evitados, se houvesse maior cobertura global de vacinas”, acrescentava a OMS.

Por exemplo, no caso do sarampo, registou-se um aumento de 30 por cento em 2018. Ainda que nem todos os casos se devam à hesitação perante as vacinas, alguns países com disponibilidade desta vacina que já estavam perto de erradicar a doença tiveram um ressurgimento naquele ano.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, as razões pelas quais se opta por não vacinar quando existe essa possibilidade são complexas: complacência, inconveniência no acesso às vacinas e falta de confiança.
Pressa não deve "sacrificar o rigor"
Na semana passada, uma conferência na Carolina do Norte, Estados Unidos, reuniu mais de 200 praticantes de investigadores e praticantes de medicinas não convencionais, ativistas anti-vacinas e membros do público.

O evento foi promovido como uma reunião para pessoas “que buscam a verdade” e os participantes enfatizaram a importância da medicina alternativa no combate à Covid-19. Ao mesmo tempo, expressaram a sua preocupação perante questões de segurança de uma hipotética vacina contra o novo coronavírus.

“A ciência está a ser apressada. A ciência não se apressa. Isso é uma receita para o desastre. (…) Tem de ser como com qualquer outro fármaco, tem demorar dois ou três anos pelo menos, preferencialmente cinco anos”, considerou Del Bigtree, responsável por um grupo de combate à vacinação nos EUA.

A Casa Branca tem como objetivo alcançar uma vacina eficaz contra o coronavírus nos próximos meses e produzir 300 milhões de doses disponíveis até ao final de 2020, tendo para isso lançado a Operação “Warp Speed”, de iniciativa público-privada, de forma a acelerar a investigação.

Noutros países do mundo, nomeadamente na Europa e na Ásia, a corrida à vacina e a urgência de resultados positivos nos primeiros ensaios clínicos é vertiginosa. Mas, por estas razões e face à desconfiança do público, os especialistas consideram que é essencial chegar a uma vacina eficaz e garantir toda a segurança da mesma.

Francis Collins, diretor do National Institutes of Health, insiste que a segurança deve ser a principal prioridade. Este grupo de investigação norte-americano está a criar um plano para testar os principais candidatos à vacina contra a Covid-19, tendo como prioridade compreender se as vacinas são eficazes mas também se podem ser tomadas em segurança.

“Não quero que as pessoas pensem que estamos a saltar etapas, porque isso seria um grande erro. Este é um esforço para tentar alcançar o sucesso, não para sacrificar o rigor. A pior coisa que pode acontecer é apressarmo-nos com uma vacina que possa ter efeitos colaterais significativos”, considerou.
Diminuição drástica da vacinação
No caso de uma crise pandémica global, a desconfiança, o medo, a desinformação e a falta de recursos pode fomentar ainda mais os riscos para a vacinação. Há menos de duas semanas, a Organização Mundial de Saúde alertava para o risco de 80 milhões de bebés de todo o mundo com menos de um ano de idade falharem a vacinação contra doenças como a poliomielite, sarampo ou a difteria devido à pandemia do novo coronavírus.

Em mais de 53% dos 129 países analisados pela Organização Mundial de Saúde houve sinais de disrupções “moderadas a severas”, ou mesmo a suspensão total dos serviços de vacinação entre os meses de março e abril de 2020.

As razões que explicam a interrupção ou menor acesso a estes serviços são variadas, refere a Organização Mundial de Saúde. Se por um lado há pais que receiam sair de casa e levar os filhos a centros de saúde e hospitais, por receio de contaminação, há também a questão da falta de equipamentos de proteção individual e de uma menor disponibilidade por parte dos profissionais de saúde para a vacinação, perante a necessidade de destacar mais recursos humanos na resposta à pandemia.

Em Portugal, por exemplo, o número de vacinas administradas em maio de 2020 caiu mais de 40 por cento em comparação com o mesmo mês de 2019.

De acordo com os dados das autoridades de saúde, o número de vacinas administradas em Portugal em abril já tinha caído para quase metade em comparação com o mês homólogo. Em março, a queda foi de 13 por cento.

Nos últimos meses têm sido vários os apelos das autoridades no que diz respeito à vacinação. Na conferência de imprensa diária sobre a pandemia, esta terça-feira, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, sublinhou: "Não há nenhum motivo neste momento para que as crianças não tenham as suas vacinas atualizadas. A vacina evita muitas doenças, algumas delas graves. Nesta altura a última coisa que queremos é ter surtos de outras doenças".
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