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Educação das raparigas ameaça dividir taliban afegãos

por Graça Andrade Ramos - RTP
Menina afegã em Cabul, Afeganistão Reuters

O direito das raparigas a frequentar as aulas numa escola está a servir de campo de batalha entre as alas extremista e moderada dos taliban. A questão levou mesmo diversos clérigos, até do Paquistão, a criticar a proibição da frequência escolar feminina, acusando os taliban de prejudicar a religião muçulmana.

Há praticamente nove meses, desde que os taliban regressaram ao poder no Afeganistão que as adolescentes afegãs deixaram de poder frequentar a escola secundária. Protestos públicos e manifestações sob a palavra de ordem “Estamos fartas de estar presas!” foram dispersos pelas forças de segurança.

A questão está contudo longe de ser consensual entre os próprios dirigentes, incluindo clérigos dos próprios taliban. Também se manifestaram contra a proibição o poderoso ministro da Administração Interna e vice-líder dos Taliban, Sirajuddin Haqqani, o líder do Ministério do Ensino Superior, Abdul Baqi Haqqani e Absdul Ghani Baradar, cofundador dos Taliban.

Mais significativo, o clérigo Jalilullah Akhunzada, diretor do seminário de Dar al-Uloom da cidade de Herat no leste do país, emitiu em março passado uma fatwa, ou ordem religiosa, em apoio à educação das raparigas.

“Os clérigos estão a manifestar-se e a emitir declarações e a dizer que a educação das raparigas é um direito”, afirmou Ibraheem Bahiss, analista para o Grupo de Crise Internacional. “Estão a tentar convencer os extremistas que esta decisão [de proibir a frequência escolar] é prejudicial”.

A fatwa foi publicada depois do Governo regional de Kandahar ter emitido um decreto e até marcado data para o regresso delas às aulas, 23 de março. Pressão de vários dirigentes taliban conservadores incluindo do ministro da Justiça, Abdul Hakim Haqqani, forçaram as autoridades regionais a recuar.

Milhares de alunas só souberam da decisão no próprio dia de regresso e ficaram à porta das escolas, em lágrimas. Uma professora, que pediu anonimato para não ofender os seus diretores Taliban, descreveu o desespero a que assistiu. “Dissemos-lhe que tinham de se ir embora. As raparigas desataram a chorar. E pediram, ‘estamos prontas a usar a burka mas por favor deixem-nos ficar”.
Pressão dos clérigos
O filho de Akhunzada, conhecido como Mualana Muhibullah, afirmou que a fatwa emitida pelo pai é “uma expressão da verdade e realidade que necessita ser afirmada”. Há ainda assim condições.

“As raparigas e mulheres deviam ter o direito a educar e a ser educadas, mas preservando as condições necessárias a uma rapariga muçulmana”, afirmou, referindo-se à segregação nas escolas e ao uso de roupa conservadora. “Se uma mulher for educada, ela pode criar melhores crianças e desenvolver uma melhor sociedade”, argumentou.

As imagens transmitidas para todo o mundo das jovens a chorar à porta das escolas fechadas transmitiram além disso a ideia de que a decisão dos taliban de não reabrir as escolas secundárias para as raparigas se deveu ao facto do Islão ser contra as mulheres.

O filho de Jalilullah Akhunzada diz que o pai pretendeu contrariar esta ideia. Muhibullah afirmou ainda que a fatwa emitida pelo pai se seguiu a uma reunião com as autoridades de Kandahar e com o líder taliban Haibatullah Azhundzada.

Akhunzada finalmente tomou uma posição depois do governador de Herat lhe pedir uma justificação para enviar ao líder Taliban e assim poder abrir as escolas às adolescentes locais.

Outros clérigos começam a emitir a sua opinião sobre a questão, num embaraço sério para o taliban. De Cabul, na província de Balkh no norte, até à província de Paktia, no sul, e do vizinho Paquistão, têm chovido cartas e organizado sessões a pedir aos taliban a reabertura das escolas para as raparigas.

A repreensão mais significativa veio do clérigo paquistanês, Muhammad Taqi Usmani, um dos mais influentes professores religiosos do mundo muçulmano.

Numa carta divulgada pela imprensa em meados de abril, ele lamentava que “os inimigos tenham transformado num instrumento de propaganda” a proibição das raparigas frequentarem a escola. Recomendava aos taliban que “dissipassem esta impressão de que o Islão ou o Emirado Islâmico [taliban] são contra as mulheres”.

É muito mais difícil para os taliban ignorar os clérigos do que os ativistas pelos direitos femininos e é embaraçoso para eles serem repreendidos por tantos professores da doutrina, referiu Bahiss. “Isso parece estar a desmentir os extremistas quando eles afirmam que têm o apoio da maioria quando se trata da decisão de reverter a educação”.
Crítica sem precendentes
Muitos dentro dos taliban consideram que o governo está fora da realidade e não percebem como o Afeganistão mudou depois de duas décadas de domínio apoiado pelo Ocidente.

Samira Hamidi, afegã e membro da Amnistia Internacional da Ásia do Sul, afirmou que “existe uma tremenda consciência da importância da educação das raparigas”.

Uma das razões que está a levar milhares de afegãos a unirem-se em torno da defesa do direito das raparigas a frequentar as escolas baseia-se no simples facto de que todas as famílias têm raparigas adolescentes ou pré-adolescentes ou conhecem quem as tenha, refere ainda Samira.

“E estão todos traumatizados”, por lhes ter sido negada a escolaridade – e dessa forma um futuro. “Mesmo que não tenha uma rapariga adolescente em casa, se tiver uma filha de uma idade inferior, se esta questão não for resolvida, não há futuro possível para elas”, sublinhou Samira.

Um porta-voz do Ministério da Educação, Aziz Ahmas Ryan, garantiu que estão à espera de luz verde dos taliban para retomar o ensino delas. “Mal a liderança do Emirado Islâmico decida, o ministério da Educação está pronto a abrir as escolas das raparigas do 7º ao 12º grau, no próprio dia em todo o Afeganistão”, afirmou.

O movimento está a tornar-se “um campo de batalha entre os extremistas e moderados entre os taliban”, referiu Bahiss.

E não se sabe quem irá ganhar. “De forma geral quando há pressão pública, os taliban parecem reafirmar as suas decisões. Mas desta vez a resistência é liderada pelos taliban”, lembrou, referindo-se aos clérigos afiliados com o movimento. “Não tem precedente”, afirma, “e seria interessante ver se este método consegue forçar os extremistas a ceder”.
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