EUA. Quando encontrar culpados não responde ao real problema dos motins

por Graça Andrade Ramos - RTP
Protestos em Washington, EUA, a 02 de junho de 2020, na sequência da morte do afro-americano George Floyd dia 25 de maio sob custódia policial, em Minnesota Reuters

A Rússia está a ser de novo apontada como origem de muita da agitação social que se vive nos Estados Unidos desde a semana passada, quando a violência e a raiva tomaram conta de dezenas de cidades norte-americanas, incluindo Washington em torno da Casa Branca, após a morte de mais um afro-americano, George Floyd, no momento da sua detenção policial a 25 de maio.

Nos últimos dias surgiram suspeitas sobre mão da Rússia, lançadas de forma mais ou menos velada na sua maioria por membros do Partido Democrático ou dele próximos.

O Kremlin reagiu com um encolher de ombros e negou a teoria. "Quaisquer insinuações que foram mencionadas estão completamente erradas, incorretas e, tanto quanto nos é dado saber, tais insinuações de forma nenhuma refletem a posição oficial de Washington", disse o porta-voz do Governo russo, Dmitry Peskov.

"Nunca interferimos em questões internacionais e não fazemos tenção de interferir agora", sublinhou.
Injustiças e desigualdades lembra ONU
No meio do caos, as verdadeiras causas da revolta, mais do que o seu aproveitamento, parecem estar a perder-se. Há agora quem tente recuperá-las para relançar o debate sobre a questão de fundo.

A responsável nas Nações Unidas pela defesa dos Direitos Humanos, lembrou por exemplo, esta terça-feira, as desigualdades históricas no acesso a saúde, educação e empregos nos Estados Unidos, que estão na base dos protestos contra a morte de Floyd.

Michelle Bachelet referiu ainda o "impacto devastador" da pandemia de Covid-19, nas pessoas de ascendência africana e de minorias étnicas, não só nos EUA, mas também no Brasil, na Grã-Bretanha e em França. "O vírus está a expor injustiças endémicas que têm sido ignoradas há demasiado tempo", afirmou Bachelet.

O risco de estes problemas serem, novamente, varridos para baixo dos escombros deixados pelos recentes motins, foi lembrado por um ex-marine norte-americano, especialista em Informação, que resolveu por os pontos nos iis.

Scott Ritter quis sublinhar que não serve de nada tentar encontrar  fora dos Estados Unidos culpados para um cancro que alastra há décadas "à vista de todos", nas forças policiais norte-americanas.

O que classifica como "injustiças sociais e legais do sistema policial americano", ignoradas por "gerações de líderes americanos que exploram em proveito político próprio a cultura baseada no medo que se alimenta deste sistema". Ou como quem diz, olhem para quem aproveita na verdade o racismo norte-americano.
O bicho-papão russo

Incovenientemente, a opinião de Ritter surgiu na RT, um canal de televisão russo de notícias em inglês.

A escrever para um canal russo, o ex-marine mostrou-se naturalmente irritado  em particular com as acusações que têm surgido contra Moscovo, como autor e instigador do caos da última semana.

A título de exemplo, mencionou recente entrevista de Wolf Blitzer, da CNN, à democrata ex-conselheira para a Segurança Nacional, Susan Rice.

Apoiante de Barack Obama e membro da sua Administração, Rice afirmou que a promoção da violência durante manifestações "vem direitinha de um livro de instruções russo". "Estamos sempre a ver isso, temo-lo visto durante anos e sinceramente todos os dias nas redes sociais onde aproveitam qualquer questão dolorosa e fraturante... E jogam em ambas as frentes!", indignou-se.

"Querem dividir-nos, levar-nos a lutar uns contra os outros e a desintegrar-nos a partir de dentro", acusou. Os recentes motins poderão mesmo resultar da influência russa direta, sem olhar a fações. "Não me admiraria se me dissessem que fomentaram alguns destes extremistas dos dois lados, usando as redes sociais. Não iria ficar surpreendida de saber que estavam a financiá-los de alguma forma, e isso é algo que temos de levar a sério", defendeu Susan Rice.

Ritter denuncia o que chama de "hiperventilação" da imprensa americana sobre a influência de Moscovo na sociedade norte-americana. Alimentada, aliás por declarações como as do senador republicano do Estado da Florida, Marco Rubio, presidente em exercício do Comité do Senado para a Informação, e as de Evelyn Farkas, outra responsável do setor de Defesa norte-americano na Administração Obama e atual candidata ao Congresso.

Rubio disser estar "a ver MUITA atividade nos media de #protesto &contra reações de contas das redes sociais ligadas a, pelo menos, três adversários estrangeiros". E Farkas escreveu, "espero que o @FBI esteja a investigar interferência estrangeira direta ou indireta nas pilhagens. Não está de forma alguma de parte".

Ambos destilaram as suas suspeitas na rede Twitter. Ambos são conhecidos pelas suas publicações anti-russas, pelo que, não há muitas dúvidas a quem se referem as alegações deixadas nas redes sociais.
O fracasso de Obama
Para Ritter, estas declarações de Rice, Farkas ou Rubio são nada menos do que "o cúmulo da hipocrisia intelectual e da cobardia moral". E evitam a identificação do verdadeiro problema e dessa forma a adoção das medidas "difíceis e necessárias" para reformar o sistema.

A amargura de Ritter é mais fácil de entender quando as suspeitas de intervenção russa vêm de ex-responsáveis da Administração do democrata Obama, que antecedeu Donald Trump na Casa Branca, e que foi eleito como o primeiro presidente negro dos Estados Unidos.

As comunidades negras foram uma das grandes bases de apoio e a sua eleição foi um marco histórico. Esperava-se o início de uma nova era, ou pelo menos a diminuição do racismo. Sucedeu o oposto.

Os anos de Obama na Casa Branca estiveram longe de marcar uma viragem nos tumultos e na violência de origem racial que a espaços irrompem na vida norte-americana. Foi mesmo sob a sua presidência que, num dos múltiplos protestos desses anos, surgiu o movimento contra a violência policial orientada por motivos racistas, #BlackLivesMatter.

Quando Obama assumiu o cargo, em 2009, uma sondagem dos New York Times/CBS News revelava que dois terços dos americanos consideravam as relações inter-raciais como geralmente boas.

Em 13 de julho de 2016, no fim do segundo mandato consecutivo de Obama, uma nova sondagem dos mesmos responsáveis, mostrava uma viragem dramática.

Os números revelaram que, 69 por cento dos americanos consideravam então as relações raciais más de forma geral, um dos níveis mais altos de discórdia desde os motins de 1992 em Los Angeles.

A sondagem realizou-se nos dias seguinte ao assassínio, em Dallas, de cinco polícias e concluiu que seis em cada 10 americanos achavam que as relações raciais estavam a piorar. Um ano antes a percentagem tinha sido de 38 por cento.

O descontentamento racial atingiu então o seu ponto mais alto da presidência de Obama, ao nível da revolta de 1992 gerada pela absolvição dos polícias acusados de espancar Rodney King.

Na altura, as relações entre as comunidades negras e a polícia estavam tão tensas que mais de metade das pessoas negras interrogadas na sondagem se afirmava nada surpreendida pelo ataque que matara dias antes os cinco polícias em Dallas e ferira outros nove. Também quase metade dos americanos brancos admitia não estar surpreso.
Até quando?
As expetativas quanto à melhoria das questões raciais nos Estados Unidos sob Barack Obama eram, obviamente, irrealistas, reconheceu Nick Bryant, correspondente da BBC em Nova Iorque, seis meses depois desta sondagem.

"Os problemas raciais da América não desapareceram simplesmente porque Obama passou oito anos na Casa Branca. Longe disso", escreveu.

O analista reconheceu ainda que a educação de Obama esteve longe de ser típica dos negros norte-americanos, o terá contribuído para o que pode ser considerado um dos grandes fracassos da sua presidência, uma vez que o afastou do entendimento dos problemas do negro comum.

Para Bryant, e muitos outros analistas, a eleição de Trump, em parte às cavalitas do que chamou "a reação" dos movimentos de defesa da supremacia branca a Obama, pôs um ponto final no que poderiam ter sido dois mandatos transformadores, sobretudo devido ao estilo intempestivo, irrefletido e, no mínimo, pouco conciliador do novo Presidente, ele próprio acusado várias vezes de atitudes racistas.

A revolta destes dias, em ano eleitoral, e os tumultos associados, aproveitam aos críticos de Trump, sejam quais forem os seus autores. Certamente, existem indícios de interferência exterior às cidades afetadas pela violência e de interesses ocultos a fomentarem os motins da última semana. Nenhuns são contudo suficientes para apontar culpados diretos.

Os dedos apontados multiplicam-se, ao ritmo das explicações avançadas para as pilhagens e vandalismos, que parecem surgir do nada durante manifestações inicialmente pacíficas.

Da extrema-esquerda e da Antifa, até à extrema-direita do movimento "aceleracionista", passando por anarquistas e barões de droga, a responsabilidade tem sido geralmente distribuída de acordo com as preferências políticas dos acusadores.

A maioria dos analistas afirma aliás que os agentes serão múltiplos e muitos terão agendas opostas, apesar de recorrerem a meios de luta semelhantes.

A única certeza parece ser que nenhuma dessas análises põe o dedo na verdadeira ferida que continua a envenenar grande parte da sociedade norte-americana, que até há 60 anos vivia ainda em parte sob leis de segregação. Pior, não ajudam a identificar os remédios e tratamentos que poderão leva-la, finalmente, a cicatrizar para nunca mais reabrir.
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