Famílias do 11 de Setembro e regime taliban disputam fundo afegão de 7 mil milhões

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
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Duas décadas depois, a questão das indemnizações pendentes dos ataques de 11 de Setembro às Torres Gémeas, em Nova Iorque, está mais viva do que nunca. O regresso dos taliban ao poder no Afeganistão, visados com a al Qaeda por uma acção das famílias das vítimas que pereceram no World Trade Center, é visto pelos advogados das famílias como possibilidade real de concluir o processo que, há uma década apontava a uma indemnização de cerca de 7 mil milhões de dólares, quantia reunida pelos anteriores governantes afegãos numa conta da Reserva Federal de Nova Iorque.

Quando em finais de 2012 um juiz de Nova Iorque decidiu em favor das famílias das vítimas do 11 de Setembro, não havia perspectivas palpáveis de que as famílias viessem de facto a ser indemnizadas. O cenário alterou-se, contudo, com a chegada ao poder dos taliban no Afeganistão.

Em causa estão os 7 mil milhões de dólares de um fundo afegão bloqueado pelos Estados Unidos que se encontra nos cofres da Reserva Federal de Nova Iorque (um dos bancos que fazem parte da Reserva Federal norte-americana). O regime taliban exige acesso a esse fundo e procurou “sensibilizar” os norte-americanos para desbloquearem as verbas, invocando problemas de liquidez do país ao mesmo tempo que acenava com o fantasma de um desastre humanitário durante o Inverno, que poderia desencadear uma onda migratória massiva na região.

Trata-se, no entanto, de uma questão que extravasa o âmbito jurídico. O caso é tão sensível que o Departamento de Justiça invocou o poder de introduzir o Governo em qualquer litígio pendente, informando o tribunal sobre a forma como os Estados Unidos encaram os seus interesses nesta litigância.

A Administração Biden terá, assim, uma palavra a dizer no processo, devendo pronunciar-se até quinta-feira. À partida, são várias as questões legais, de segurança nacional e, principalmente, políticas e diplomáticas que pesam numa decisão. Desde logo, o facto de, ao reconhecer os taliban como os detentores do fundo, implicar o reconhecimento do Governo taliban no Afeganistão, um passo que a Administração já disse estar fora de questão.

Em termos legais, uma fonte ligada ao processo ouvida pelo New York Times sugere que poderia bastar para contornar este pormenor “dar como bom” que os taliban têm um interesse válido no fundo afegão, para que este possa vir a servir como meio de pagamento das indemnizações decididas em 2012. A preocupação maior da equipa de Biden passa pela forma como os Estados Unidos podem ignorar qualquer requisito legal para reconhecer os taliban como Governo legítimo do Afeganistão sem ferir de morte a possibilidade de usar o fundo afegão para ajudar a resolver o pedido das famílias.

Duas familiares das vítimas que estão no processo desde o início, já deixaram um apelo às Administração para que não deixe esse dinheiro escapar para “os terroristas responsáveis pela morte dos nossos entes queridos”.

“Depois de os nossos maridos terem sido mortos nos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, passámos muitos anos a lutar para conseguir justiça em seu nome (…) obtivemos uma indemnização dos taliban por ordem do tribunal e agora apelamos ao presidente Biden para que garanta que os fundos venham para nós e não para os terroristas que desempenharam um papel no plano que roubou a vida aos nossos entes queridos”, declararam duas das viúvas do 11 de Setembro numa declaração conjunta.

A decisão da Administração Biden deverá chegar ao tribunal dentro de dois dias. Nos pratos da balança deve ainda pesar uma solução para o envio de ajuda humanitária para o Afeganistão e evitar o êxodo massivo invocado pelos taliban, um fantasma cada vez mais real à medida que se aproxima o rigoroso Inverno afegão. Trata-se de uma tragédia anunciada contra a qual o país, com as contas a zero e afundado numa crise generalizada, nada poderá fazer sozinho.

Atiçar a ira taliban ou ceder ao pedido das famílias

A solução que parece apresentar-se como a mais óbvia – abrir o fundo à indemnização das famílias do 11 de Setembro – tem aqui as suas arestas. Desde que chegaram ao poder em Agosto deste ano, os taliban têm vindo a exigir o acesso aos fundos do país retidos na Reserva Federal em Nova Iorque. Por outro lado, desbloquear os 7 mil milhões de dólares satisfaria as exigências das famílias.

Ceder ao pedido das famílias poderá atiçar irremediavelmente a ira do regime afegão numa altura sensível em que os Estados Unidos procuram através da negociação obrigar o grupo a uma governação mais suave, diferente daquela que exerceram na primeira passagem pelo poder no Afeganistão, entre 1996 e 2001, cinco anos marcados pela brutalidade e pela repressão.

Washington deverá tratar a questão com mãos de veludo num momento em que se tenta através do diálogo o que não se conseguiu em 20 anos de ocupação: uma garantia mínima de respeito pelos Direitos Humanos, o tratamento igualitário das mulheres afegãs e uma garantia de que o Afeganistão não se torna uma base segura para organizações terroristas com protecção de Cabul.

A Administração Biden encontra-se agora numa bifurcação que sugere dois caminhos, cada um com as suas consequências e nenhum a apresentar-se como solução ideal ou sequer equilibrada.

Sete mil milhões. O plano da Administração

De acordo com o NYT, e segundo uma fonte familiarizada com o processo, a equipa de Biden tem para já quatro prioridades na abordagem ao caso: primeiro, a Administração não pretende libertar os fundos afegãos directamente para os taliban; segundo, a Administração admite a grave crise humanitária que grassa no Afeganistão e está de acordo em que parte dos fundos seja dirigida para aplacar esse problema; terceiro, a Administração vê como legítima a reclamação das famílias do 11 de Setembro e que as verbas do fundo devem ter em conta o seu caso.

Em quarto lugar, e talvez o ponto mais sensível da questão, a Administração não reconhecerá os taliban como governo legítimo do Afeganistão, já que esse reconhecimento abriria a porta a uma multiplicidade de questões problemáticas. De facto, reconhecer os taliban como governo será o passo legal necessário para acionar o pagamento da indemnização através do fundo que pertenceria agora ao grupo, mas esse seria também o passo em falso que abriria um novo dossier de problemas para a Administração na gestão política e diplomática das suas relações com o Afeganistão e toda aquela região.

Os taliban insistem entretanto nos seus direitos ao fundo de 7 mil milhões de dólares, deixando a ideia de que as verbas são a única forma de lidar com a crise humanitária com que o país está confrontado.

“Acreditamos que o congelamento dos bens afegãos não pode resolver o problema em questão, nem a exigência do povo americano, portanto, o seu Governo deve descongelar o nosso dinheiro. Preocupa-nos que, mantendo-se esta situação, o Governo e o povo afegãos venham a enfrentar problemas que causarão uma migração em massa na região e no mundo, o que, consequentemente, criará novos problemas humanitários e económicos para o mundo”, alerta o ministro afegão dos Negócios Estrangeiros numa carta dirigida ao Congresso norte-americano.
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