Kofi Annan. Uma vida dedicada às Nações Unidas

por Andreia Martins - RTP
Kofi Annan dedicou-se durante várias décadas às Nações Unidas, estando envolvido na organização desde 1962 Reuters

Percorreu durante seis décadas vários cargos relevantes nas Nações Unidas e viria a deixar a sua marca na história da organização internacional. Kofi Annan morreu este sábado em Berna, aos 80 anos.

Nasceu em Kumasi, no Gana, a 8 de abril de 1938. Chegou às Nações Unidas pela primeira vez em 1962, como funcionário administrativo na sede da Organização Mundial de Saúde, em Genebra. Mais tarde serviu a Comissão Económica para África em Addis Ababa, na Etiópia, e ainda como membro das forças de emergência da ONU em Ismailia, no Egito.

Ocupou outros lugares de destaque na organização antes de chegar a secretário-geral, posto a que chegou poucos anos após o fim da Guerra Fria e da queda da União Soviética. No topo da organização viveu momentos de grande tensão, desde logo os atentados de 11 de Setembro de 2001 e os conflitos daí decorrentes.

Foi precisamente nesse ano, entre os dois mandatos que cumpriu na organização enquanto secretário-geral, que Kofi Annan foi agraciado com o Prémio Nobel da Paz, juntamente com as Nações Unidas.

Neste que foi um dos períodos mais conturbados para a ONU desde a sua fundação, em 1945, o secretário-geral entre 1997 e 2006 assumiu uma posição crítica quanto à atuação dos Estados Unidos.

No último discurso como secretário-geral, em dezembro de 2006, Kofi Annan foi profundamente crítico da Administração norte-americana, tendo acusado o então Presidente, George W. Bush, de violar os Direitos Humanos em nome da luta contra o terrorismo.

O responsável era crítico da invasão do Iraque, que ocorreu em março de 2003 sem a aprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Kofi Annan apelava, precisamente, ao uso de força militar apenas quando esta serve os “propósitos corretos”.

“Vocês, americanos, fizeram tanto no último século para construir um sistema multilateral efetivo, com as Nações Unidas como coração. Precisam menos dessa ordem, hoje? E ela precisa menos de vocês, mais de 60 anos depois? Certamente que não”, disse na altura o responsável que esteve na liderança da ONU durante o “momento unipolar” dos Estados Unidos.

“Mais do que nunca, os americanos – como o resto da humanidade – necessitam de um sistema global a funcionar para que o mundo possa enfrentar os desafios globais em conjunto”, referiu na altura o secretário-geral, num discurso proferido no Missouri, na biblioteca presidencial Harry Truman.
Ruanda e Srebrenica

O líder africano esteve à frente das Nações Unidas num dos períodos mais turbulentos desta organização, não escapando a várias polémicas que envolveram diretamente o seu nome.

Nos anos imediatamente antes de chegar a secretário-geral da ONU – o sétimo desde a fundação da organização – chefiou o departamento de Manutenção de Paz entre 1993 e 1996.

Foi durante esse mesmo período que aconteceram os piores massacres das últimas décadas perante a passividade da ONU, nomeadamente no genocídio de tutsis no Ruanda, em 1994, e dos muçulmanos de Srebrenica, durante a guerra na Bósnia, um ano depois.

Nos dois casos, o ganês tinha a seu cargo “capacetes azuis” que deveriam ter agido no sentido de proteger civis sob ataque, mas que falharam as respetivas missões, com as tropas europeias a retirarem-se rapidamente das duas operações. Nos dois casos foi o próprio Kofi Annan, já como secretário-geral, que ordenou uma investigação interna à inércia das Nações Unidas. E nos dois casos os relatórios foram muito críticos da atuação do homem que ocupava já naquela altura o lugar de secretário-geral.

“Annan sentiu que os mesmos países que viraram as costas aos ruandeses e aos bósnios eram os que faziam dele bode expiatório. Mas sabia que o seu nome apareceria nos livros de História ao lado de dois genocídios que marcaram a segunda metade do século XX”, escreveu Samantha Power, antiga embaixadora dos Estados Unidos junto da ONU.

Perante os dois relatórios, Kofi Annan declarou em 1999 que se arrependia de “não ter feito mais para evitar” os massacres. “Em nome das Nações Unidas, reconheço este fracasso e expresso o meu profundo remorso”, afirmou. 

Outro caso polémico em que esteve envolvido e em que foi suspeito de corrupção – ainda que tenha sido ilibado – foi o programa “Oil for Food” (Petróleo por Comida). Este programa das Nações Unidas permitia ao Iraque a venda de petróleo no mercado global em troca de bens de primeira necessidade, desde alimentação a medicamentos, contornando as sanções económicas impostas após a primeira guerra do Golfo.
ONU. Se não existisse "tinha de ser criada"
Annan foi o líder das Nações Unidas na viragem para o século XXI. Sucedendo ao egípcio Boutros Boutros-Ghali, Kofi Annan virou as atenções da organização para questões da manutenção da paz e pobreza. Nos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, o secretário-geral definiu como principais metas a eliminação da pobreza e da mortalidade infantil. 

Depois de 2006, quando foi substituído pelo sul-coreano Ban Ki-moon, Annan nunca deixou de ocupar postos de grande relevância dentro da organização internacional. Criou em 2008 a sua própria fundação, dedicada à promoção do desenvolvimento sustentável, da paz e segurança mundiais. Nesse mesmo ano, ajudou a resolver o conflito no Quénia e à reconciliação das principais fações rivais naquele país.

Em 2012 ocupou o cargo de enviado especial para a Síria, que ocupou apenas durante seis meses. Mais recentemente participou na comissão independente que investigava os crimes cometidos contra os Rohingya no Myanmar.

Os dez anos de mandato de Kofi Annan ficaram igualmente marcados pela pandemia do HIV/SIDA, sobretudo nos países africanos. O tema era recorrente nos discursos e intervenções e a luta conta a mesma foi uma das grandes bandeiras dos dois mandatos.

O jornal norte-americano The New York Times escreve no obituário que Kofi Annan era visto por muitos como um “papa secular”, figura de grande autoridade moral, com enorme carisma e cortesia que definiam o diplomata ganês.

Em Portugal, o nome de Kofi Annan é indissociável da causa timorense. Enquanto secretário-geral, Kofi Annan supervisionou o processo que conduziu à independência do país, a 20 de maio de 2002.

“Juntos vamos conseguir atravessar a atual crise, abrindo as portas a uma nova era para Timor-Leste. Uma era em que Timor-Leste ocupará o seu lugar entre a família das nações, onde os seus homens, mulheres e crianças possam viver vidas de dignidade e paz”, disse o então secretário-geral das Nações Unidas no primeiro discurso feito naquele país, em fevereiro de 2000, na véspera do referendo da independência.

Foi o empenho demonstrado pela independência de Timor-Leste que levou o ex-Presidente português Jorge Sampaio a condecorar Kofi Annan com a Ordem da Liberdade.

Em “We the Peoples: A U.N to the Twenty-First Century”, livro publicado em 2014 que reúne os mais relevantes discursos de Kofi Annan enquanto secretário-geral das Nações Unidas, o antigo líder mostrava-se confiante no futuro da organização que ajudou a moldar, exigindo da mesma uma ligação mais próxima às populações.

“Continuo convencido que as Nações Unidas pertencem não apenas aos Governos dos seus Estados-membros, mas acima de tudo aos seus povos, em nome das quais a organização foi fundada. Isso significa que a ONU em de se tornar mais democrática, assegurando que todos os povos do mundo, e não apenas os mais ricos e poderosos, dão a sua voz. (…) Os povos devem insistir que este precioso instrumento está verdadeiramente nas suas mãos”, considerava.

Já em entrevista à BBC em abril último, por altura do 80.º aniversário, Kofi Annan reconhecia as imperfeições da organização que liderou durante nove anos e a que dedicou várias décadas de trabalho, mas considerava que esta é essencial para a manutenção da ordem mundial.

“As Nações Unidas podem ser melhoradas, não são perfeitas, mas se a organização não existisse teria de ser criada”, referia então o diplomata ganês. 
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