"Se travarmos a guerra, acabaremos com a fome". Apesar da pandemia, os conflitos continuam a ser o maior impulsionador da fome

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Goran Tomasevic - Reuters

O mundo produz comida suficiente para alimentar toda a sua população, mas, mesmo assim, 690 milhões de pessoas deitam-se todas as noites com um estômago vazio. Com a crise provocada pela pandemia da Covid-19, a fome no mundo atingiu números recorde. Este ano, o Programa Alimentar Mundial (PAM) procura assistir 138 milhões de pessoas que sofrem de fome aguda, debatendo-se com a necessidade de financiamento urgente. Mesmo perante estes novos desafios e os números desencorajadores, a maior agência humanitária do mundo permanece confiante na erradicação da fome, salientando que já existe a vacina para este problema: comida. A chave para atingir esse objetivo é fim do conflito armado, que continua a ser o maior impulsionador da fome. "Acabem com a guerra e teremos uma oportunidade realista de acabar com a fome", apela Tomson Phiri, porta-voz do PAM, em entrevista à RTP.

O aparecimento do vírus SARS-CoV-2 e a sua rápida disseminação pelo mundo veio agravar ainda mais a outra pandemia que todos os anos tira milhões de vidas: a fome. As milhares de pessoas que eram já consideradas vulneráveis pela sua insegurança alimentar, desnutrição e os efeitos de conflitos e outros desastres, estão agora a um passo mais próximo da fome extrema.

Estima-se que existam cerca de 700 milhões de pessoas com fome do mundo, sendo que 272 milhões estão em risco ou já estão a sofrer de insegurança alimentar aguda devido ao efeito agravante da Covid-19, um aumento de cerca de 50 por cento em 2020.

“2020 foi massivo, assim como vai ser 2021, por causa da pandemia”, diz Tomson Phiri, porta-voz do Programa Alimentar Mundial (PAM) em Genebra, à RTP.

O PAM é a maior agência humanitária do mundo que ao longo dos últimos 60 anos trabalha em 88 países para travar a fome. Num ano normal, a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) alcança, aproximadamente, 100 milhões de pessoas. “E o que chamamos de ano normal é, mesmo assim, um período muito desafiante, porque temos os conflitos, as alterações climáticas e continuamos a ter crises económicas em muitas comunidades”, explica Tomson Phiri.

No entanto, devido à crescente onda de fome impulsionada pela pandemia, o PAM visa ajudar este ano 138 milhões de pessoas. Deste total, 34 milhões de pessoas estão a um passo da fome extrema. Este número consta do relatório redigido pelo PAM em conjunto com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). No documento, a FAO e o PAM alertam que o número de pessoas “a lutar com níveis alarmantes de fome extrema” pode aumentar drasticamente nos próximos meses, “se a assistência internacional não for ampliada”.

A pandemia “é realmente uma pressão adicional. Aumentou a fome e agravou os problemas nos países em que estamos a trabalhar”, afirma o porta-voz.
“Colisão de crises”
No fundo, Phiri explica que o PAM enfrenta hoje uma “colisão de crises”: “Temos desafios com os conflitos, já tínhamos desafios com os níveis da fome, que estavam a abrandar mas de repente aumentaram novamente, e agora temos que lutar contra a Covid-19”.

O porta-voz do PAM explica ainda que a pandemia da Covid-19 alterou o mapa de assistência da organização. “No passado, as atividades do PAM estavam concentradas em áreas rurais, afetadas por conflitos, mas em 2020 e no início deste ano, aumentámos a nossa atividade em áreas mais urbanas”, explica Tomson Phiri.

Dando o exemplo do Sudão do Sul, um dos países entre os piores focos de fome no mundo, Phiri explica que a maioria da assistência estava centrada nas áreas afetadas por conflitos. “Mas em 2020, o PAM teve de inovar e certificar-se que as atividades são também prestadas nos centros urbanos, como Cuba, a capital”, afirma. Mais de sete milhões de pessoas no Sudão do Sul deverão enfrentar níveis de insegurança alimentar aguda durante o período de abril a julho, segundo refere o relatório da FAO e do PAM.

Devido à Covid-19, o mesmo acontece na Nigéria, a maior economia africana. “Há quatro, cinco, seis anos, a ajuda do PAM estava apenas concentrada no nordeste do país. Mas agora expandimo-nos até Lagos, Abuja, até áreas urbanas, porque agora mais pessoas precisam de assistência nessas áreas, quando não era necessária há uns anos”, explica Phiri.

“Nós temos problemas em todo o lado. Para cada direção que se olhe, podemos estar mesmo perante uma catástrofe, que é maioritariamente derivada aos conflitos contínuos, alterações climáticas e à Covid-19”
, afirma o porta-voz.
“Os conflitos são o maior entrave”
Apesar de a pandemia da Covid-19 ser o mais recente desafio para o PAM, o maior obstáculo que a organização enfrenta continua a ser o conflito. “Hoje, os conflitos são o maior entrave. Enquanto as alterações climáticas, os efeitos da Covid-19 e a desaceleração económica em resultado da pandemia estão também a contribuir para aumentar a fome. Estas são as realidades que estão dramaticamente a mudar o mundo”, explica Tomson Phiri, sublinhando que “o conflito causa níveis de fome gigantes”.

Dois terços do trabalho desenvolvido pelo PAM são realizados em países em guerra, onde as pessoas têm três vezes mais probabilidade de ficar subnutridas do que aquelas que vivem em países sem conflitos. Das cerca de 700 milhões de pessoas com fome no mundo, cerca de 60 por cento vivem em áreas afetadas por conflitos armados. Só nos quatro países mais afetados por conflitos (Iémen, Sudão do Sul, Burkina Faso e Nigéria), o PAM estima que existam 155 milhões de pessoas em risco de morrer à fome.

Dos cinco países que são considerados emergências para o PAM, a crise de fome no Iémen é a que gera maior preocupação. O nível atual de fome neste país do Médio Oriente que vive em clima de guerra desde 2014 é sem precedentes, com 16,2 milhões de iemenitas a sofrer de insegurança alimentar. Todos os meses, o PAM tem o objetivo de alimentar 13 milhões de pessoas que estão mais vulneráveis. A taxa de desnutrição no Iémen é uma das mais elevadas do mundo, com 12,2 milhões de grávidas e 2,3 milhões de crianças com menos de cinco anos a sofrer de desnutrição aguda.

A crise de fome na República Democrática do Congo (RDC) é a segunda maior no mundo, com 21,8 milhões de pessoas com insegurança alimentar aguda. Estima-se que cinco milhões de crianças sofram de desnutrição aguda.

Para além destes dois países, o PAM luta ainda contra a emergência na Síria, Sudão do Sul e na Nigéria. Na Síria, um país devastado por quase uma década de guerra, 12,4 milhões de pessoas estão a passar fome, o que corresponde a 60 por cento da população do país. “Este é de longe o número mais alto alguma vez registado”, alertou a agência da ONU em fevereiro deste ano.

No Sudão do Sul, a insegurança alimentar atingiu o nível mais elevado desde que o país alcançou a independência, em 2011. Mais de metade da população deste país africano (cerca de sete milhões de pessoas) luta contra a fome.

Mais a oeste, na Nigéria, 3,4 milhões de pessoas lutam contra a fome extrema e 300 mil crianças sofrem de desnutrição aguda. A situação é particularmente preocupante no norte do país, em Estados como Borno, Yobe e Adamawa, afetados por conflitos.

A guerra e o conflito podem causar insegurança alimentar e fome, tal como a fome e a segurança alimentar podem causar conflitos latentes que originam o uso de violência. Nunca atingiremos o objetivo de abolição da fome se não pusermos fim à guerra e ao conflito armado”, referiu o Comité Nobel Norueguês no texto de atribuição do Prémio Nobel da Paz ao PAM, em 2020. “A ligação entre a fome e o conflito armado é um círculo vicioso”, sublinha o comité.

Para além dos níveis de fome causados pelos conflitos armados, estes dificultam ainda o acesso do PAM às comunidades mais afetadas. É o que acontece, por exemplo, em Moçambique, onde 950 mil pessoas necessitam de ajuda alimentar, enquanto o país enfrenta um agravamento da violência.

“Cada vez mais pessoas estão a ser deslocadas”, afirma Tomson Phiri. “Cabo Delgado é uma província que já era carenciada. Esta é uma região onde a desnutrição aguda já tinha ultrapassado os níveis de emergência e as pessoas já estavam a sofrer sem o conflito. O conflito atual é uma pressão adicional”, explica. “Nós estamos preparados para o pior, mas a esperar pelo melhor”, afirma o porta-voz.
“Acabem com a guerra e teremos uma oportunidade de acabar com a fome”
Uma vez que o conflito armado é o maior entrave ao trabalho do PAM, este pode ser igualmente a chave para o fim da fome mundial. “Oito em cada dez das maiores crises do mundo são conflitos. Por isso, se conseguirmos travar a guerra, seremos capazes de acabar com a fome”, afirma Tomson Phiri. O PAM tem como missão acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhorar a nutrição a nível mundial até 2030 – um objetivo com o qual a organização da ONU continua comprometida, apesar dos recentes desafios impostos pela pandemia.

“O PAM é uma organização que prospera em desafios e planeia com base na esperança. É uma organização muito otimista”, reconhece o porta-voz da organização da ONU em Genebra.

Tanto a pandemia da Covid-19 como a fome “são uma catástrofe que a humanidade está a enfrentar atualmente”, explica Tomson Phiri. A principal diferença entre estas duas pandemias mortais está na solução. Ao contrário do SARS-CoV-2, sempre houve uma vacina para a fome.

“A fome é possível de ser resolvida porque nós não estamos à procura de alguma coisa fora deste mundo, como uma vacina. Nós já temos a vacina para a fome. É a comida. E o mundo produz comida suficiente para toda a gente”, explica o porta-voz. “Mas depois temos problemas como os conflitos”, que são o principal impulsionador da fome. “Acabem com a guerra e depois teremos uma oportunidade realista de acabar com a fome”, apela Phiri.

“A solução aqui é a comida. Disponibilizem comida, na altura certa, na quantidade certa, e iremos estabilizar a fome”, reitera o porta-voz.

Segundo o PAM, o mundo fez já um grande progresso na redução da fome. Atualmente existem menos 300 milhões de pessoas a viver com fome do que em 1990, apesar de a população mundial ter aumentando em 1,9 mil milhões. Este progresso é, em grande parte, derivado do trabalho desta organização da ONU.

Tomson Phiri, que iniciou a sua carreira no PAM em Zimbabué, mas viajou para países como o Sudão do Sul e Mauritânia, diz ter testemunhado na primeira pessoa o impacto da ajuda prestada pela organização às cerca de 100 mil pessoas que alcança todos os anos.

“Se há coisa que eu presenciei é que o PAM é a diferença para muitas das pessoas que visamos”, afirma o porta-voz da organização. “Eu vi crianças a ganhar saúde, vi comida a crescer em terras áridas. Depois de terem recebido assistência, eu vi pessoas a recuperar meios de subsistência após o choque”, descreve. “Eu próprio recebi ajuda alimentar quando era criança. E olhem para mim agora, trabalho para o Programa Alimentar Mundial. Por isso, a ajuda alimentar funciona”, testemunha Phiri à RTP.
PAM precisa em urgência de 5,5 mil milhões de dólares
De forma a conseguir alcançar o seu objetivo de erradicação da fome, o PAM apela às contribuições privadas e dos Governos. “Com o apoio dos doadores, é muito realista resolver a fome”, afirma Tomson Phiri.

Em 2020, e apesar da pandemia, Phiri explica que os doadores “cavaram fundo” e a organização recebeu um financiamento recorde de oito mil milhões de dólares. No entanto, tal como ressalva o porta-voz da organização em Genebra, em 2020 foram também atingidos números máximos de fome no mundo devido à Covid-19. “Por isso, apesar de termos recebido um aumento de financiamento, nós também aumentamos as necessidades”, explica Phiri.

“As necessidades ultrapassam sempre os recursos disponíveis”
, afirma o porta-voz, ao mesmo tempo que explica que foram forçados a reduzir as rações de alimentos a alguns refugiados em países como Uganda, Sudão do Sul, Quénia e Ruanda. “Mas esta é uma situação que se pode resolver facilmente se recebermos a ajuda necessária a tempo”, salienta.

Este ano, para assistir as 138 milhões de pessoas que sofrem de fome aguda, o PAM precisa de um total de 15,1 mil milhões de dólares, mas prevê que irá receber apenas metade.
No entanto, em urgência, a organização está a apelar à doação de 5,5 mil milhões de dólares (mais de quatro mil milhões de euros) para salvar as 34 milhões de pessoas que se encontram em risco alimentar.

O PAM tem cinco mil camiões, 20 navios e 92 aviões no terreno a distribuir mais de 15 mil milhões de rações de comida por ano, com um custo médio de 50 cêntimos por um prato de comida. Com 15 euros por mês, o PAM consegue alimentar uma pessoa. Para uma criança pequena, um prato de comida pode custar ao PAM apenas 30 cêntimos.

Em reconhecimento do trabalho desenvolvido por esta organização – no combate à fome, na melhoria das condições para a paz em zonas de conflito e nos esforços para prevenir o uso da fome como uma arma de guerra e de conflito – o PAM foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 2020.

“O Prémio Nobel da Paz trouxe uma grande mudança. Foi um reconhecimento da importante ligação entre os conflitos e a fome e o papel crítico que a assistência alimentar desempenha nos passos a dar em direção à paz e estabilidade”, afirma Tomson Phiri, sublinhando que este prémio “coloca as 700 milhões de pessoas que vão dormir todos os dias com fome no centro da atenção mundial”.

“Este prémio forneceu-nos uma plataforma para amplificarmos as vozes dessas pessoas e também criou o ímpeto para mobilizar apoio e recursos no futuro”, conclui o porta-voz do PAM.
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