"Não temos comida". Caravana de migrantes a caminho dos EUA barrada na Guatemala

por Graça Andrade Ramos - RTP
Milhares de migrantes passaram ao relento a noite de 17 para 18 de janeiro de 2021, após confrontos com forças de segurança da Guatemala Reuters

Ainda antes da tomada de posse como 46º Presidente norte-americano, Joe Biden já tem na sua mesa de trabalho o dossier da imigração, que a pandemia de Covid-19 ajudou a enfiar na gaveta. Uma nova caravana de milhares de pessoas a pé, na sua maioria vindas das Honduras, pôs-se a caminho da fronteira dos Estados Unidos com o México, na esperança de que algo mude com um novo inquilino na Casa Branca e quase sem preocupações para com a pandemia.

Andrés Manuel Lopez Obrador, Presidente do México, já deixou um apelo direto a Joe Biden, com quem espera manter “boas relações”, referindo em conferência de imprensa esta segunda-feira ter esperança numa reforma que dê resposta à migração indocumentada para os Estados Unidos e ao caos que provoca.

Obrador deixou ainda críticas aos migrantes que integraram a nova caravana, sublinhando que ninguém devia entrar à força noutros países. Desde 2018, pelo menos 12 caravanas de migrantes tentaram, quase sempre sem êxito, chegar à fronteira entre o México e os Estados Unidos.

Em plena transição de poder, Washington ainda não reagiu ao que pode desencadear uma nova leva de sérios problemas fronteiriços, caso a Guatemala e o México deixem passar os migrantes, num convite a novas marchas.

O Presidente cessante dos EUA, Donald Trump, adotou face à migração forçada uma estratégia oposta à do seu antecessor, Barack Obama, reforçando o muro erguido ao longo da fronteira com o México e determinando a detenção das pessoas ilegais em centros, incluindo crianças. Joe Biden, ex-vice-Presidente de Obama, prometeu durante a campanha e por "questões morais", "reverter as políticas mal orientadas" de Trump.

Face a uma nova fuga dos seus cidadãos, o governo hondurenho referiu em comunicado que “somente unidos como região, podemos continuar a trabalhar para enfrentar a migração irregular" e apontou o dedo ao “crime organizado que lida com tráfico de pessoas”.

Tegucigalpa pediu ainda ao executivo da Guatemala "que investigue e esclareça as ações das forças de segurança”, ao barrarem o caminho a milhares de pessoas que entraram a pé este fim de semana no país, irregularmente.
Confrontos
Os primeiros pequenos grupos de hondurenhos passaram sexta-feira em Florido a fronteira com a Guatemala, mas sábado a marcha já contava com um total estimado de 9.000 migrantes, divididos em três grupos de 3.000. Devido à presença de mulheres e de crianças, as primeiras ordens guatemaltecas foram de os deixar passar, apesar da falta de controlo sanitário em plena pandemia.

Domingo, as autoridades do departamento de Chiquimula, a 200 quilómetros da Cidade da Guatemala, resolveram intervir para deter o avanço de 6.000 pessoas. Polícias e militares formaram uma barreira de filas cerradas atravessadas na estrada e usaram gás lacrimogéneo contra parte da caravana, tendo-se registado confrontos entre migrantes e forças de ordem guatemaltecas.

Quase 1.570 pessoas foram mandadas de volta para as Honduras e uma centena foi forçada a regressar a El Salvador. Houve quem fugisse às malhas da operação policial. Quem não conseguiu passou a noite ao relento, à beira da estrada de Vado Hondo, perante a barreira militar.

Ao longo do dia de segunda-feira os apoios escasseavam.

“Não temos água nem comida, há milhares de crianças, mulheres grávidas, bebés, e não querem deixar-nos passar”, resumiu Pedro a um repórter da Reuters no local. “Estamos cheios de fome. Só temos água e algumas bolachas”, queixou-se uma mulher que viaja com o filho de 15 anos, a filha de nove e uma sobrinha de quatro.
Um perigo chamado SARS-CoV-2
A Reuters reportou mais de duas mil pessoas retidas na estrada dia 18 de janeiro, no quilómetro 177 e a 55 quilómetros da fronteira. Um grupo foi para o centro da vila, em busca de refúgio, de alimentos e de uma solução. Outros aceitaram arrepiar caminho para serem testados à Covid-19 e talvez obter assim autorização para seguir viagem.

Pelo menos 21 migrantes hondurenhos estavam positivos ao coronavírus. Todos foram transferidos para centros de tratamento específicos onde ficarão de quarentena antes de serem repatriados, informou o Ministério da Saúde da Guatemala.

A maior preocupação é a disseminação do SARS-CoV-2 através dos migrantes que fugiram às operações de controlo para se espalharem pelas colinas em volta de Vado Hondo, a caminho da fronteira da Guatemala com o México.

A ponte de Motagua, à entrada de Zacapa, foi cortada por 400 militares e 200 polícias que permanecem na estrada para barrar a caravana. No quilómetro 137, em Rio Hondo, outro contingente impediu o avanço de outro grande grupo migrante.

A procuradoria da Guatemala para os Direitos Humanos protestou entretanto contra a violência
exercida pelos militares e pela polícia contra os migrantes. Jordán Rodas Andrade, presidente da instituição, disse estar “alarmado e preocupado”.

E lembrou que o Código de Migração estabelece que “o Estado da Guatemala reconhece o direito de toda a pessoa a emigrar ou imigrar, pelo que o migrante pode entrar, permanecer, transitar, sair e regressar ao território nacional, conforme a legislação nacional”.
Unir "a região"
Os migrantes hondurenhos e salvadorenhos fogem geralmente da pobreza, do desemprego, da violência e da falta de proteção nos seus países. Condições de vida difíceis, recentemente agravadas por dois furacões, em novembro passado, e pela pandemia. O seu destino é a fronteira dos Estados Unidos e alimenta-os a esperança de portas abertas sob um novo Presidente.

Para as autoridades da Guatemala e do México, a caravana de migrantes representa vários perigos e estão a ser tomadas providências musculadas. “Estamos a falar de segurança nacional", explicou o diretor do Instituto Guatemalteco para as Migrações, Guillermo Díaz.

O exército da Guatemala reforçou os seus contingentes em sete departamentos com mais de 5.000 soldados e conta com o apoio de milhares de agentes da Polícia Nacional Civil para impedir o avanço da caravana.

As autoridades mexicanas reforçaram igualmente a vigilância nas suas fronteiras com a Guatemala, sobretudo na área após Tecun Uman. “Para já está tudo calmo por aqui”, referiu um guarda fronteiriço mexicano, sob anonimato. “Espero que a Guatemala os contenha”, acrescentou à agência Reuters.
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