O recado talibã aos países ocidentais. Regressem, mas com dinheiro, não com armas

por RTP
Um mercado em Cabul em 2020. O futuro imediato do Afeganistão depende do eventual entendimento entre os talibãs e as potências ocidentais DR

A proposta foi feita pelo novo governador da província de Helmand, no sul do Afeganistão, numa entrevista dada ao jornal britânico Guardian. Talib Mawlawi aproveitou para deixar a mensagem, dirigida ao Reino Unido e a todos os países membros da NATO. Reconheçam os talibãs como líderes legítimos do Afeganistão e regressem. Com dinheiro, não com armas.

Nascido e criado em Helmand, Talib Mawlawi lutou pelos talibãs há mais de 20 anos, quando o grupo assumiu pela primeira vez o controlo do país. Depois combateu as forças britânicas a quem foi atribuída a segurança de Helmand após 2001. “Enfrentámo-nos no campo de batalha, não chegamos a conhecer-nos em tempos normais”, afirmou à repórter britânica Emma Graham-Harrison na capital provincial, Lashkar Gar. Ela nota a presença, em cima da secretária, de uma espingarda de assalto, apesar de Mawlawi insistir que a guerra acabou. “Agora podem conquistar os nossos corações e alegar-nos se reconhecerem este Governo”, acrescentou o governador talibã.

Talib Mawlawi assumiu o governo de uma província à beira do colapso económico, tal como o resto do país. Pode ter vencido, mas sabe que sem auxílio externo o futuro, incluindo o seu, é extremamente incerto. A chantagem emocional é a sua nova arma.

“Todos estes países estrangeiros invadiram e mataram as nossas mulheres e crianças, os nossos idosos e destruíram tudo”, afirmou ao Guardian. “Agora a comunidade internacional deveria ajudar-nos com ajuda humanitária e focar-se no desenvolvimento educacional, empresarial e comercial”.

Em Helmand, desde o último mês do anterior governo até agora, os salários dos funcionários governamentais não foram pagos. Muitos dos que trabalhavam para as ONG estrangeiras fugiram ou foram forçados a suspender os seus projetos, os restaurantes estão meio vazios e quase ninguém compra o que as lojas vendem.
Dilema

Após a guerra, a catástrofe económica e sanitária, agravada pela pandemia de Covid-19, está ao virar da esquina, como alertou a ONU esta semana. Sem outros recursos externos, o cultivo e o contrabando do ópio, já um dos principais rendimentos dos talibãs, poderá ser a única resposta para o Afeganistão.

Resta saber se as potências internacionais se sentem sob alguma obrigação moral ou se estarão dispostas a aulixiar um país que se tem revelado um sorvedouro de recursos e de vidas humanas.

A guerra contra os talibãs nos últimos 20 anos em Helmand custou 457 vidas de soldados britânicos e quase 20 mil milhões de libras na manutenção do esforço de guerra, de acordo com números oficiais de Londres, embora cálculos de analistas independentes dupliquem estas estimativas.

Os americanos perderam por seu lado quase 2.500 tropas em todo o país, muitas delas vítimas de atentados talibãs. As operações militares dos EUA superaram os dois biliões de dólares, incluindo 88 mil milhões no esforço de treinar e de equipar todo um exército, com material que agora beneficia os talibãs.

O ‘bolo’ norte-americano inclui mais de 36 mil milhões de dólares na construção e reconstrução de estradas, de hospitais e de escolas, num investimento de recuperação do país largamente desperdiçado. O apoio humanitário aos refugiados e deslocados de guerra exigiu ainda apoios orçados em 4,1 mil milhões de dólares.

As vítimas afegãs da guerra, tanto civis como militares, superam largamente as 100 mil. Há mais de 3,5 milhões deslocados internos a necessitar de apoio. E em 20 anos quem podia e tinha iniciativa, fugiu do país.

Em todo o planeta há cerca de 2.6 milhões de refugiados afegãos, sem contar com os milhares que seguiram na peugada da recente retirada das forças ocidentais, com medo das represálias talibãs por terem colaborado com os estrangeiros e serem considerados traidores.
Cedências
O convite feito aos ocidentais, vindo do arqui-inimigo das tropas britânicas em Helmand, é no mínimo surpreendente. E revelador da forma prática como o poder talibã enfrenta os seus novos problemas.

O próprio Mawali reconhece que, há poucos meses, antes de se mudar para as confortáveis instalações governamentais construídas com financiamentos norte-americanos em Lashkar Gar, um encontro com jornalistas britânicos teria seguido outro rumo. “Era comandante em Sangin quando combatíamos os britânicos”, lembrou, referindo que toda a população do distrito o apoiava na luta. “Não estavam interessados na presença dos britânicos”.

As dificuldades impostas pelo governo de um país falido e quase sem infraestruturas mudaram aparentemente o discurso. A moeda de troca pelo auxílio é a segurança trazida às populações.

Agora as pessoas podem reconstruir em paz e vão ser capazes de ganhar a vida, afirmou Mawlawi ao Guardian. “Houve 20 anos de lutas, por isso vai levar tempo a regressar ao normal”, reconheceu. Em parte porque nessas mesmas duas décadas o grupo foi acusado de perseguir e de matar civis não simpatizantes com a sua causa.

Nas ruas de Lashkar Gar, os jornalistas do jornal britânico encontraram a mesma vontade de recomeço e de preocupação com a economia, sobretudo depois da maioria das Organizações Não Governamentais terem abandonado a província, tal como quem tinha ligações aos britânicos.

Samiullah, de 26 anos, possui uma loja no bazar das mulheres, onde vende joalharia e decorações. Não se lembra da primeira vez que os talibãs estiveram no poder, embora tenha ouvido histórias das imposições, desde o comprimento das barbas à proibição de música profana e de jogos de cartas. Quase toda a sua vida foi vivida em guerra.

“O que peço aos britânicos é que reconheçam o nosso governo e nos deem alguma ajuda económica”, disse aos repórteres, ao mesmo tempo que acolhia com alívio a nova segurança trazida pelos talibãs. “Espero que não interfiram muito com a nossa vida pessoal”, acrescentou.

Khatera, mãe de quatro filhos, dorme com eles ao relento no mesmo bazar de Lashkar Gar. Ficou viúva de um soldado no início do ano e nos últimos meses o pouco auxílio que recebia por esse facto esfumou-se. Fazia ainda limpezas e lavava roupa de algumas das famílias mais ricas da cidade para aumentar o rendimento, mas a maioria destas fugiram.

“Não tenho quaisquer problemas com os talibãs, os meus filhos precisam de comer. O Governo anterior era reconhecido pelo mundo inteiro, agora precisam de reconhecer este para nos poderem ajudar”, afirmou ao Guardian.

É o mesmo estribilho de Mawlawi. “A comunidade internacional ajuda os países apoiados pelos seus civis. Nós trouxemos segurança e temos o apoio do nosso povo, por isso deviam ajudar-nos e reconhecer o nosso governo”, defendeu o governador talibã de Helmand.
O que Cabul decidir
O reconhecimento – e a ajuda – ocidental dependem contudo da conduta dos talibãs, desta vez, para com as mulheres, minorias ou dissidentes. Por exemplo, quando Mawlawi era comandante de Sangin, a educação das raparigas era ali inexistente.

A liderança talibã talvez tenha mudado de ideias ou cedido perante a eventualidade das perdas em auxílio internacional se a educação fosse negada às mulheres. Em todo o país as escolas primárias reabriram incluindo as raparigas.

Lashkar Gar obedeceu à nova regra, sejam quais forem as convicções pessoais do governador Mawlawi, como confirmou uma visita surpresa da repórter do Guardian a uma escola da capital provincial. Que o governador talibã de Helmand tenha aceite responder presencialmente no seu gabinete às perguntas de uma mulher britânica é também sinal dos tempos.

As universidades também reabriram para as mulheres, embora com segregação e regras apertadas de vestuário, com a imposição do hijab ou da burca. O futuro é uma incógnita, pois apenas mulheres poderão dar aulas às alunas.

Para os liceus ou para as mulheres com empregos além o ensino ou da área da saúde, as regras ainda estão por definir. Talib Mawlawi garantiu que irá seguir o que for decidido pelo governo central. “Os ministérios ainda estão em reuniões para isso. O que eles decidirem, será implementado”.
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