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Razões que levaram Espanha a fracassar na contenção da pandemia

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Num jardim em Madrid, foram colocadas bandeiras de Espanha em memória das vítimas de Covid-19 Sergio Perez - Reuters

A vizinha Espanha é o país europeu com mais casos por 100 mil habitantes. Para justificar o insucesso na contenção do vírus após o desconfinamento, especialistas apontam para erros de planeamento, falhas no rastreio dos contactos e excesso de confiança.

Há pouco mais de dois meses, o presidente do Governo espanhol, Pedro Sánchez, anunciava: “Derrotámos o vírus, controlámos a epidemia e vergámos a curva”. No entanto, o discurso atual é totalmente contrário, com Espanha a liderar a lista de países da europa ocidental com mais casos confirmados de infeção por Covid-19.

A 21 de junho, um dia depois do fim do estado de emergência, Espanha levantava as restrições e começava o desconfinamento. No entanto, algumas destas limitações regressavam a certos territórios já em julho. Pouco depois, a 18 de agosto, toda a Espanha observava medidas de restrição mais rígidas que foram endurecendo cada vez mais em certas regiões até ao ponto atual, onde determinadas regiões de Madrid voltam a observar limitações à mobilidade.

O país vizinho apenas conseguiu afastar-se das piores estatísticas europeias da incidência da Covid-19 entre as últimas semanas da primavera e as primeiras do verão, voltando a liderar em meados do verão, com números muito superiores aos registados em qualquer outro país da europa ocidental. O que levou, afinal, o princípio de “novo normal” a falhar em Espanha?

Para responder a esta questão, os especialistas recuam ao período em que se dava início ao desconfinamento. O plano em si era “exemplar”: um levantamento assimétrico das restrições, com distinção entre níveis, que avançavam à medida que as comunidades apresentassem uma incidência da doença suficientemente reduzida e capacidades suficientes para enfrentar a epidemia.

Porém, os especialistas apontam dois problemas essenciais: o Ministério da Saúde não quantificou qual deveria ser essa incidência e quais as garantias que cada comunidade deveria apresentar relativamente ao controlo do avanço da epidemia.

Não existiam, por isso, parâmetros claros e muitas comunidades avançaram de nível quando ainda não estavam preparadas. O caso mais evidente é o de Madrid, que avançou para a fase 2 sob a promessa de capacidade de vigilância epidemiológica que nunca foi cumprida.

“A nova normalidade era outra coisa. Aquilo que experimentámos foi simplesmente uma desaceleração precipitada sem fazer os trabalhos de casa”, explica ao jornal El País Miguel Hernán, professor de epidemiologia da Universidade de Harvard.

Hernán considera que para chegar ao momento de levantamento de restrições eram necessários quatro requisitos que, na sua opinião, não foram cumpridos por Espanha.

O primeiro passava pela capacidade das comunidades autónomas em criar e reforçar as competências de assistência e de diagnóstico, bem como de monitorização, isolamento ou quarentena. O segundo pela definição de indicadores epidemiológicos transparentes e harmonizados por parte do Governo espanhol que facilitassem ações coordenadas. Em terceiro lugar, o especialista considera necessário um delineamento das medidas específicas para se dar início ao desconfinamento por parte de especialistas multidisciplinares. Por fim, um processo contínuo de tomada de decisões com base na avaliação de dados epidemiológicos das três semanas anteriores.

Já para Miquel Porta, professor especialista em epidemiologia, medicina preventiva e saúde pública, o fracasso espanhol de entrada na “nova normalidade” remonta ao período anterior à pandemia. “Não foi na delineação de critérios para o desconfinamento que falhamos, mas sim na aplicação desses mesmos critérios”, defende o especialista, justificando esta falha com a “incapacidade do Estado”.

“Nem sequer é um problema de políticos, mas de aparatos do Estado”, continuou. “O Tesouro é um mecanismo engraxado, com ferramentas do século XXI. Obviamente que existe fraude e poderia funcionar melhor, mas qualquer imposto municipal em qualquer canto da Espanha está registado. Os nossos [serviços de vigilância epidemiológica e de saúde pública] funcionam como no século XIX”, concluiu Miquel Porta.
Falhas no rastreio e excesso de confiança
As falhas consistentes no rastreio dos contactos próximos de infetados por Covid-19 são outra das razões apontadas para o crescimento da curva epidémica em Espanha. Madrid, por exemplo, deveria ter equipas de rastreio para acompanhar os casos positivos, identificar e monitorizar os contactos próximos. No entanto, não há evidências de que essas equipas tenham, de facto, existido e muitos doentes em quarentena dizem nunca terem sido contactados por estas equipas.

Para além disso, os especialistas denunciam ainda um excesso de confiança. “Chamar de novo normal foi talvez um fracasso, porque nos fez confiar em nós mesmos”, admite Saúl Ares, cientista do Centro Nacional de Biotecnologia.

“Enquanto o vírus estiver connosco, devemos ter três coisas bem assentes: assistência primária reforçada a tempo inteiro; equipas de rastreio e, em terceiro lugar, mesmo que a incidência seja baixa, a população deve conviver com as regras de um certo distanciamento até que isto passe. Devemos evitar encontros em ambientes fechados e usar sempre máscara, para além das restantes normas de higiene”, explica Saúl Ares.

Todas estas razões estão aliadas ao comportamento de algumas empresas que não se empenharam suficientemente na proteção dos seus trabalhadores e dos cidadãos em geral, que não cumpriram as direções do Ministério da Saúde no período de desconfinamento.

Depois de quase quatro meses trancados, é normal querer voltar à normalidade. Mas todos os Governos sabem que esse preconceito é perigoso em qualquer situação. Devíamos ter um plano de desconfinamento mais sólido. Todas as comunidades pareciam prontas, mas algumas não estavam. E se adicionarmos isso a um comportamento muito irregular dos cidadãos, é criada a tempestade perfeita", diz Rafael Bengoa, um dos mais conceituados especialistas em Saúde Pública de Espanha. “Para muitas pessoas, o novo normal consistia em voltar à normalidade e assim se cometeu um erro fundamental: não assumir que estávamos a voltar a um momento em que a curva estava a descer, mas o vírus ainda não tinha desaparecido”, sublinha Daniel López Acuña, antigo diretor de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Em suma, os especialistas alertam que, até à chegada de uma vacina, o conceito de “novo normal” deverá ser esquecido. Rafael Bengoa, juntamente com outros 19 especialistas, assinaram um manifesto na revista The Lancet a exigir ao Governo espanhol para que seja estudado aquilo que falhou e que proponham medidas para evitar que Espanha siga o mesmo caminho no futuro, porque, segundo os especialistas, outras pandemias irão surgir.

“Eu não iria à procura de um novo normal”, diz Bengoa. “Iria na medida em que não precisamos de manter o distanciamento social, mas voltar à normalidade política, social, das desigualdades que existem no país, não é o caminho a percorrer”, acrescenta.
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