A filha do ex-vice-presidente Dick Cheney perdeu esta quarta-feira a presidência da Conferência Republicana, o terceiro cargo na hierarquia do partido no Congresso norte-americano. Era até agora a mulher republicana com o posto mais elevado na Câmara mas foi vítima da sua aparente obsessão contra a influência do ex-Presidente Donald Trump sobre os seus pares.
Enquanto presidente da Conferência, esperava-se que Cheney se focasse na transmissão das decisões do partido e no combate à Administração do democrata Joe Biden.
Em vez disso, ela transformou o cargo numa tribuna de ataques e de denúncias incessantes do discurso de Trump sobre o "roubo" e a "grande mentira" das eleições presidenciais de 2020.
A tensão com a liderança partidária acabou por se tornar intolerável. Liz Cheney foi destituída em menos de 15 minutos de reunião, à porta fechada, por voto oral e sem registo da escolha individual, o que suscitou diversas críticas.
Antes da votação, Cheney, eleita pelo Wyoming, ainda apelou os seus pares a abandonarem o apoio às reivindicações de Trump quanto à "grande mentira" das eleições de novembro.
Depois de destituída mostrou-se ainda mais combativa. "Farei tudo o que puder para impedir que o antigo Presidente Trump sequer se aproxime da Sala Oval", prometeu.
"Não podemos apoiar ao mesmo tempo a grande mentira e a Constituição. E no futuro a nação necessita disso. O país precisa de um Partido Republicano forte. A nação precisa de um partido baseado nos valores fundamentais do conservadorismo", afirmou Cheney. Uma hora depois anunciava a sua recandidatura ao cargo em 2022.
As alegações de Donald Trump sobre a contagem dos votos nas eleições de
2020 têm sido consistentemente desmentidas por autoridades estaduais,
federais e judiciais.
A Casa Branca considerou a destituição desta quarta-feira "inquietante".
"Como disse o Presidente na semana passada, é dificil entender", afirmou a secretária para a imprensa, Jen Psaki. "É inquietante ver qualquer líder, de qualquer partido, ser atacado simplesmente por dizer a verdade", acrescentou.
Os eleitores "terão de decidir por si mesmos sobre se a reação daqueles que elegeram para os representar deveria ser acolher e sustentar conspirações e ataques à nossa democracia", sublinhou Psaki.
A destituição
Há cerca de três meses Liz Cheney havia sido confirmada, por ampla maioria e apesar da oposição interna, após ter integrado o grupo de 10 republicanos que votaram a favor da destituição de Trump por incitamento ao ataque ao Capitólio, dia 6 de janeiro de 2021. Na altura, mesmo sem apoiar diretamente as suas posições, alguns outros representantes republicanos, como Carlos Gimenez, de Miami, defenderam a sua reeleição para o cargo, considerando que ela tinha "votado em consciência".
"Acho bem que continue como nossa presidente da Conferência. Alguns dos meus colegas discordam profundamente disso e querem removê-la. Eu não. Considero-a formidável e penso que uma diferença de opinião é sempre salutar", afirmou então Gimenez.
Este apoio esfumou-se em nome da necessidade de "unir" esforços na recuperação do controlo do Congresso em 2022 e perante a divisão interna quanto a Donald Trump.Segunda-feira, o líder da minoria republicana na Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy, em carta enviada aos republicanos eleitos a confirmar o voto sobre a continuidade de Cheney esta quarta-feira, sublinhou que o partido não se fecha a membros com opiniões dissidentes.
Numa aparente resposta pública às crescentes pressões de bastidores para se calar ou se conter, Cheney discursou terça-feira seis minutos perante a Câmara para invocar o seu "dever" na defesa da democracia contra um "mentiroso".
"Isto não é sobre politica. Não é sobre partidarismo. Isto é sobre o nosso dever como americanos" defendeu, referindo-se a Donald Trump como uma "ameaça". "Milhões de norte-americanos têm sido enganados pelo anterior Presidente. Ouvem as suas palavras mas não a verdade", afirmou a republicana.
"Ficar em silêncio e ignorar a mentira dá força ao mentiroso. Eu não irei ser parte disso. Não irei sentar-me a ver em silêncio, enquanto outros lideram o nosso partido num caminho que abandona o estado de direito e se junta à cruzada do antigo Presidente para fragilizar a nossa democracia", atacou Liz Cheney.
Dissidentes
A eleita pelo Wyoming não está sózinha no Partido Republicano. "Liz Cheney tem razão", disse no início do mês Carly Fiona, ex-candidata a candidata republicana à Casa Branca, aos microfones da CNN. "Penso que os republicanos terão de perder em grande escala para perceberem que o caminho de futuro não é esse", de apoio a Trump.
Antes do discurso de Cheney terça-feira, uma centena de representantes republicanos ameaçou abandonar o partido se este não reverter a rota.
"Um grupo de mais de 100 republicanos proeminentes pensa que a situação do Partido Republicano atingiu um ponto tão grave que é agora tempo de admitir seriamente se a única opção será uma alternativa", explicou ao The New York Times o ex-secretário da Segurança Interna, Miles Taylor, um anti-trumpista convicto apesar da sua passagem pela Administração Trump.
Quinta-feira, os 100 deverão assinar uma carta intitulada "Um Apelo à Renovação Americana", de apoio à formação de um novo partido caso o republicano não inverta o seu apoio ao ex-Presidente e às suas alegações de que as eleições lhe foram roubadas em 2020.
"O Partido Republicano partiu-se. É tempo dos racionais resistirem contra os radicais", referiu Taylor.
A dissidência não deverá apesar de tudo ter o apoio de Liz Cheney, para quem a formação de um terceiro partido apenas iria fortalecer os democratas.
Partido de Trump?
Muitos analistas próximos do Partido Democrata afirmam que a destituição de Liz Cheney comprova a transformação do Partido republicano no partido de Trump.
Cheney está aliás a ser aplaudida pela sua coragem e integridade, dentro e fora do seu partido.
Outros afirmam contudo que ela foi vítima da sua cegueira contra Trump e da sua insistência em regressar a um assunto que a maioria dos republicanos, mesmo apoiando Trump, prefere deixar cair no esquecimento.
E lembram o direito do partido em afastar alguém que, precisamente, impede essa via de progresso, pelo simples facto de invocar constantemente um homem cuja influência se reduziu a dissertações polémicas numa rede social própria.
"Há um espaço para debate sobre Trump, que poderá recandidatar-se de novo em 2024. Cheney não perdeu o cargo porque os republicanos não quererem debater esta questão", referiu James W.Antle III no The Week.
O analista refere que Trump ganhou o apoio republicano por estar longe do poder e por responder aos anseios dos eleitores do partido, ao contrário dos seus opositores, mais preocupados com as boas críticas do The New York Times aos seus discursos.
E esse é o verdadeiro caminho para o partido, concluiu. "A nova liderança republicana que responda às preocupações dos eleitores é no fim de tudo o rumo mais provável para o partido virar a página de Trump, não o estilo de mudança de regime pretendido por Cheney", referiu.
"Essa é a principal razão pela qual Cheney se viu hoje no lado errado da mudança", afirmou.