Uma crónica politicamente correta

por Opinião de Germano Almeida - Analista de Política Internacional
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Os últimos anos mostraram-nos que o que parecia impossível não só pode vir a acontecer como já está a acontecer: Brexit, Trump, Salvini, Orbán, crescimento de Le Pen, projeto europeu em risco, EUA a destratar aliados e a cortejar ditadores. A maior ameaça com que diariamente nos confrontamos não é o politicamente correto: é o politicamente incorreto. Se nós, eleitores europeus, não percebermos isto a tempo, vamos ter mais um grande susto já em maio.

“Macron está preocupado com o fim do mundo, nós estamos preocupados com o fim do mês”.  Frase atirada pelos “coletes amarelos” em manifestações que incendiaram Paris durante vários fins-de-semana

O discurso mais fácil, nos estranhos dias que correm, é demonizar “os políticos” e alinhar no canto de sereia dos populismos (mais ou menos autoritários, mais encostados à extrema-direita ou com raízes na esquerda radical).

Tudo parece ter começado em 2016: em junho, a “caixa de Pandora” aberta por David Cameron dava o pior resultado possível. Reino Unido partido ao meio, com ligeira vantagem para o pesadelo do Brexit.

Meses depois, em novembro, os EUA agravavam o choque: Donald Trump chegava à Casa Branca, baseado numa campanha de mentiras, insultos e argumentos falaciosos que instigam o ódio e a divisão.

Não caiu do nada: o processo de nomeações partidárias já tinha sinalizado o desconforto.

Do lado democrata, a super favorita Hillary Clinton partira com avanço aparentemente inatacável, mas chegara à Convenção a olhar nervosamente para o retrovisor, perante os 46% de Bernie Sanders, um candidato que misturava um discurso frontal e corajoso contra os “poderes instalados” a uma fórmula anti-establishment, contra os políticos e contra a globalização que, nalguns pontos, chegava a tocar em segmentos semelhantes aos que Donald Trump arrebanhara, do lado republicano.

Os longuíssimos 36 dias que levaram Bernie Sanders a assumir apoio público a Hillary Clinton, já depois de matematicamente não lhe ser possível obter a nomeação, anunciavam o pior: ainda que pela omissão, o campeão da “esquerda verdadeira” e “independente do establishment” estava a contribuir para permitir o desastre.

Foi o que se viu: parte do eleitorado que votara em Sanders não percebeu o que estava verdadeiramente em causa e, em vez de votar Hillary para travar o inaceitável (ver Trump na Casa Branca), ou se absteve -- caindo na dicotomia ilusória de que “Hillary ou Trump é tudo igual, venha o diabo e escolha” -- ou votou mesmo em Donald, numa espécie de dura comprovação de que as franjas se tocam mesmo nessa condenação “sexy” do “sistema”.

Não, não foi a maioria: Trump teve menos três milhões de votos que Hillary e grande parte dos eleitores Sanders – com maior ou menor entusiasmo – votaram mesmo na nomeada democrata.

A questão é que, nesta era de sociedades divididas e fragmentadas, não é preciso um forte sentimento maioritário para que se caia na armadilha populista.

É um daqueles casos em que a pior e mais perigosa mentira é a que tem um fundo de verdade.

O que está mais à superfície são os vícios do “sistema”. O que é mais difícil de antecipar é que a “solução” populista para o “destruir” é ainda pior – e não é, afinal, solução nenhuma.

E é aqui que estamos.

Donald Trump com dois anos e três meses de presidência tumultuosa e a pisar constantemente os limites do seu poder, numa ameaça séria e clara aos fundamentos daquela que continua a ser a mais admirável democracia do mundo.
Figuras tristes

O Reino Unido a fazer uma figura tão triste que chega a ser difícil de digerir, no modo como, simplesmente, Governo de Londres, Parlamento, conservadores e trabalhistas em geral não fazem a mínima ideia do que devem fazer perante a grande trapalhada do Brexit – a decisão política mais estúpida dos últimos anos.

Macron a derrapar, em apenas ano e meio, de uma eleição com 66% dos votos para um mínimo de aprovação abaixo dos 30%, acossado por um movimento de contestação demagógico e claramente manipulada por forças populistas que têm interesse em demonstrar a “fragilidade” da V República.

Quando, depois da imposição de um “imposto ambiental”, os “coletes amarelos” acusam Macron de se “preocupar demasiado com o fim do mundo” e ignorar que, antes, os franceses estão “preocupados com o fim do mês”, identificamos uma guerra dos mundos a acontecer em plena Paris – entre quem só olha para o imediato (e sente razões para isso) e quem tem uma visão global de como se deve conduzir uma sociedade exposta a ameaças locais mas também globais.

Infelizmente, as duas coisas não podem ser separadas. Antes pudessem ser. Aquilo que os governos dos países democráticos têm que resolver, de forma cada vez mais premente e imediata, são os constrangimentos orçamentais a gestão dos interesses e necessidades mais imediatas.

Mas se entrarmos numa era em que deixa de haver espaço para que se pense no médio/longo prazo, o problema é que atingiremos um ponto em que a suposta prioridade do “curto prazo” perde validade – pela simples razão que aquilo que só apareceria a “médio/longo prazo” é já o presente.
A mentira propaga-se, a verdade custa a explicar
A mentira é sempre muito mais fácil de propagar do que a verdade. A verdade é mais difícil de explicar e, por vezes, custa a assimilar. Mas tem que haver formas de a manter politicamente vencedora.

O discurso populista tem uma vantagem perversa: não está obrigado aos constrangimentos dos factos.

Por isso é muito mais fácil para Donald Trump dizer à sua base que “os EUA estavam a ser enganados no Acordo de Paris”.

Ou como foi para Farage ou Johnson, em 2016, dizer aos britânicos que iam “voltar a mandar na sua querida Inglaterra” depois do Brexit.

Ou para Orbán dizer que não quer estrangeiros a tirar empregos aos húngaros, ou para Salvini aprovar leis em Itália que penalizam criminalmente quem tente ajudar refugiados.

Ou para Bolsonaro dizer, num Brasil com taxa de homicídios incomportável, que “bandido bom é bandido morto” – e também ele pôr em causa a evidência das alterações climáticas para poder libertar o Brasil das amarras dos acordos internacionais e acelerar a desmatação da Amazónia que interessa a quem o financia.

Em poucos anos, milhões de pessoas em países supostamente avançados perderam o foco do que é essencial e caíram na confusão populista acelerada pelas novas formas tecnológicas de espalhar “fake news”.

Assumir como plataforma política a defesa dos valores da UE, a preservação do multilateralismo, o respeito pelas diferenças culturais, uma agenda ambiental que antecipe as consequências das alterações climáticas pode ser cada vez mais difícil – mas é ainda mais importante.

Os próximos dois meses e meio vão ser uma espécie de “toda a verdade” sobre como nós, europeus, nos posicionamos perante esta dúvida essencial para o nosso futuro: estaremos mesmo conscientes da armadilha em que começámos a cair em 2016?

Iremos a tempo de travar o pior, colocando os últimos três anos numa espécie de intervalo a não repetir? Ou isto é mesmo um processo degenerativo em que o pior está para vir e ainda nem sequer imaginamos o que aí vem?

As eleições europeias de maio serão o “agora ou nunca” neste dilema. Se nós, eleitores europeus, não percebermos isto a tempo, vamos ter mais um grande susto já em maio.

Lembremo-nos do arrependimento imediato com que tantos britânicos reagiram depois de votarem “Brexit”… “só para protestar” (“isto é mesmo a sério? E agora?”). É muito mais difícil combater os perigos do populismo do que protestar contra os males do “mais do mesmo”.
Comunicar a “Europa”
A “Europa” cometeu muitos erros nas últimas décadas mas é ainda o projeto político mais admirável de que há memória. Os seus defeitos são mais visíveis e facilmente alvo de contestação. Mas as suas virtudes – tão fundas e definidoras do que é a nossa forma de vida – têm que ser mais expostas, melhor comunicadas e mais praticadas.

A recente carta do Presidente Macron, dirigida “aos europeus” e publicada em várias línguas, teve o mérito de assumir a iniciativa. Não concordo com todas as propostas nela contida – mas estranho que os mesmos que passam a vida a queixar da “falta de liderança” europeia venham agora rejeitar à partida discussões que têm mesmo que ser abertas.

Esta é, por isso, uma crónica politicamente correta.

O “politicamente incorreto” começou por ser sexy, depois de décadas a falarmos mal “dos políticos”.

Os últimos anos revelaram-nos o que devia ser óbvio, mas demora a saltar à vista da maioria: é que mesmo muito pior que o “politicamente correto” é o que politicamente é tão incorreto que tem que ser combatido. Já.
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