E se fosse consigo?

Há um aspecto que sempre me fascinou por ser para mim totalmente incompreensível, a tentação que algumas pessoas demonstram para criarem problemas onde eles não existem, tendo muitas vezes de encontrar soluções para resolver esse problema inexistente mas que se torna num verdadeiro berbicacho de dimensões avassaladoras. É, para mim, o caso do Infarmed. Que se saiba não existia até agora qualquer problema com a localização da atual Autoridade Nacional do Medicamento e dos Produtos de Saúde, que em tempos se chamou Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento. Está em Lisboa desde sempre, ou seja, desde 1993.

O regulador dos sectores do medicamento e dos produtos de saúde emprega actualmente cerca de 350 pessoas, que se instalaram e vivem na capital, muitas delas vindas de outros pontos do país, com vidas estáveis e previsíveis como todos desejamos ter a certa altura da nossa vida, principalmente quando somos pais de jovens crianças ou pessoas já a beira da reforma e sem vontade para grandes aventuras. Alguém entendeu que a cidade do Porto precisava de um prémio de consolação por ter perdido - como se esperava, ainda que não merecesse - a corrida à sede da Agência Europeia do Medicamento. E vai daí, decidiu-se administrativamente que a partir de janeiro de 2019 o organismo passa para o Porto. Sem uma razão técnica forte que o justifique, sem um estudo do impacto que vai provocar em centenas de pessoas e famílias, sem que tivesse havido um amplo debate tendo em conta a importância deste organismo, sem que se tenha tido a preocupação de encontrar uma razão válida que servisse de argumento incontestável. Além disso, como se vai perceber, há espaço para uma longa luta nos tribunais que acabará por inviabilizar pelo direito uma transferência que não tem factos concretos que a justifique.

Criou-se em Portugal a ideia de que descentralizar é tirar serviços de Lisboa e colocá-los em outras cidades, sendo que esta ideia beneficia apenas as grandes e já desenvolvidas em detrimento das pequenas e mais pobres, porque obviamente não têm as infraestruturas necessárias para concorrer com as cidades maiores. Mas é errado. Descentralizar não é pegar num organismo já existente e deslocá-lo para fora de Lisboa. Descentralizar é olhar para o interior mais pobre, envelhecido e desertificado, ou para o litoral mais esquecido e fora das grandes e desenvolvidas urbes e reunir as condições para que sejam criadas unidades de raiz - empresas, fábricas, serviços - que tragam mais pessoas, e que abram a porta a mais actividade ao comércio, à restauração e à hotelaria ou ao imobiliário, para venda ou aluguer. Descentralizar é olhar para o interior e para o litoral menos cuidado e desenvolvido e criar condições para que os que lá vivem tenham melhores condições de vida, e ao mesmo tempo permitir que venham pessoas de fora atraídas pelas oportunidades e não obrigadas por necessidades criadas de forma artificial e incompreensível. Descentralizar é, antes de tudo o resto, povoar e desenvolver.

Para entender o que está em causa na questão do Infarmed basta que cada um de nós faça um exercício simples. Chegamos de manhã à nossa empresa e já está decidido que em pouco mais de um ano ou mudamos de cidade ou temos de ir para a rua. Não nos é feita uma oferta irrecusável, com condições especiais ou especialmente atractivas. Não nos oferecemos para um cargo que existe fora da nossa cidade, nem nos ofereceram um lugar que vai ser criado a centenas de quilómetros de distância da nossa residência actual. Ou seja, não há proposta, não há um processo maturado e bem pensado, não há tempo para raciocinar nem para discutir o assunto lá em casa. De repente, a nossa empresa/instituição vai mudar de cidade sem que isso nunca tenha sido equacionado ou sequer admitido como hipótese. E porquê? Porque os terrenos do Infarmed são uma boa aposta imobiliária, ou porque é preciso compensar uma frustração recente dos responsáveis pela gestão da segunda maior cidade do país?

Não vou entrar em discussões estéreis nem comentar os argumentos já invocados por alguns dos protagonistas desta triste história - Rui Moreira terá sido o mais infeliz por ter sido gratuitamente provocador, o que para mim é muito surpreendente - mas há que lembrar, com algumas perguntas, o que está em realmente causa em tudo isto. Com tantas decisões importantes para tomar e que podiam permitir resolver alguns dos problemas graves que o país enfrenta há quem se dedique a criar problemas onde não existem, e a afectar de forma insensata a vida de centenas de famílias? A troco de quê? Há alguma coisa ainda não conhecida que o justifique? E se fosse consigo?

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