Isto vai abanar a sério

Ainda mal refeitos do abanão que a vitória do Brexit provocou, na Europa e no mundo em geral, e depois do alerta de tsunami político que a vitória de Donald Trump veio accionar, eis que no próximo dia 4 pode voltar a haver um terramoto de consequências imprevisíveis com epicentro num país que por ironia do destino já vive nos últimos anos ensombrado por sucessivos e mortíferos tremores de terra. A Itália prepara-se para um referendo que está a alarmar os mercados e o coração do poder na Europa e o caso não é para menos.

Matteo Renzi cometeu um erro clássico dos líderes que têm de si próprios uma imagem muito mais positiva do que ela é na realidade ou pelo menos uma imagem mais generosa do que a percepção que existe na maioria das pessoas. Por isso apostou num "all in" que pode levá-lo a perder tudo numa única cartada que tem tanto de arriscado como de suicida. Renzi promete demitir-se se a proposta que apresentou para a reforma do sistema político for rejeitada no referendo marcado para 4 de dezembro. Os mercados e a União Europeia estão nervosos e têm boas razões para isso, porque depois do Brexit e da vitória de Trump todos perceberam que já não estamos no plano da guerra política tradicional e clássica, entre esquerda e direita, entre ideias mais liberais ou estatistas ou entre defensores da democracia plena e defensores de regimes mais autoritários e musculados. A guerra hoje é entre o sistema e quem o combate, é entre pessoas com ideias claras e honestas e pessoas com discursos erráticos e populistas que apostam no extremismo e do radicalismo como forma de marcar fronteiras. Renzi, que até agora era encarado como uma lufada de ar fresco que combatia o podre sistema político italiano tornou-se ele próprio uma imagem do sistema e isso pode ditar uma derrota de dimensões bíblicas, nos números e nos efeitos posteriores.

Matteo Renzi é jovem e bonito, dinâmico e inteligente, é um orador de excelência e chegou ao poder com um discurso corajoso e irreverente a prometer reformar um país conhecido por ter um sistema político viciado e minado por fenómenos como o compadrio e a corrupção. Mas a realidade foi-se impondo e minando a confiança dos eleitores, mesmo os do próprio partido que agora se opõem ao primeiro-ministro: a retoma económica que demora, o problema dos refugiados que agrava a situação dos italianos sem resolver o problema dos que chegam pelo Mediterrâneo, a opção pelo resgate de bancos em crise e a reforma constitucional que propôs que ou foi mal explicada ou foi mal compreendida geraram uma onda de críticas internas. Renzi promete reduzir os poderes de uma das câmaras parlamentares, que estão numa situação paritária em termos legislativas e no poder de derrubar o governo, e limitar a possibilidade das administrações locais inviabilizarem projectos que emanem do executivo italiano. Os receios de que o governo de Roma se torne uma corporação superpoderosa e difícil de travar assusta os italianos. Curiosamente, a intenção de Renzi é resolver um problema de governação num país que já teve 63 governos em 70 anos e onde os entraves políticos têm sido difíceis de ultrapassar, com reformas sucessivamente adiadas, um esforço que pelos vistos o eleitorado não valoriza. O populismo de movimentos extremistas e radicais como o Movimento 5 Estrelas ou a Liga Norte - que defendem o rompimento com Bruxelas - e a Forza Itália, ajudaram a aumentar um clima de terror e um sentimento anti-sistema que vai crescendo um pouco por todo o mundo.

Caso seja derrotado no referendo à "Lei Boschi", batizada com o nome da autora, a ministra da Reforma Constitucional e das Relações com o Parlamento, Maria Elena Boschi, e cumpra a promessa de abandonar o poder em Itália, Matteo Renzi vai permitir que a quarta maior economia da Europa mergulhe num clima de incerteza que pode ter ondas de choque difíceis de controlar, incluindo o risco de começar a ajudar á desintegração da Zona Euro. O Presidente italiano pode convocar eleições antecipadas ou indicar um novo Primeiro-ministro mas nenhuma das soluções será tranquilizadora para os mercados. Com uma mais que provável crise em Itália fica aberta mais uma porta para os extremismos e populismos alimentados por movimentos radicais que se preparam para tomar o poder que dizem combater. As presidenciais francesas estão aí à porta e Marine Le Pen está bem posicionada para chegar ao Eliseu, o famoso e desejado número 55 da não menos famosa Rua Faubourg-Saint-Honoré, e as eleições holandesas também apontam para uma provável vitória de Geert Wilders, o controverso líder do Partido para a Liberdade que é mais uma voz que alimenta um crescente discurso contra a imigração e acima de tudo contra o Islão. Os tempos mais próximos são de uma incerteza absoluta com uma única garantia, os partidos, tal como os conhecemos, acabaram e vão ter de refundar-se antes que se afundem e todos nós com eles.

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