Preconceito ou manipulação?

André Ventura parte de uma premissa errada para um raciocínio perigoso que tenta cativar votos em franjas mais vulneráveis do eleitorado, não justificada por nenhum estudo nem nenhuma tese académica que lhe dê credibilidade: que todos os ciganos vivem de expedientes e de rendimentos sociais, não trabalhando nem se inserindo na sociedade - uma ideia fácil de alimentar por questões de preconceito cultural - criando a ilusão de que os ciganos são o principal problema do país nesta questão concreta.

O que, como sabemos, é falso, embora André Ventura pareça não querer saber. Há uma parte, infelizmente ainda imensa, do país, que se aproveita da fragilidade do Estado, que não consegue fiscalizar de forma eficaz a forma ilegal, ou pelo menos ilegítima, os meios que algumas pessoas utilizam para chegar a essas verbas.

Sendo os ciganos uma minoria na sociedade portuguesa, são 37 mil em mais de 10 milhões, nunca poderiam ser o principal problema nesta matéria, mesmo que vivessem todos, em bloco, à conta do Estado e de forma ilegítima. Há ciganos que o fazem, como há outras pessoas não ciganas e em número muito superior. Uma afirmação com este teor: "Os ciganos vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado" serve apenas para alimentar o preconceito e o estigma contra uma franja da sociedade portuguesa que já vive marginalizada, em boa parte por culpa própria. Já lá vamos.

Se olharmos para os 5 principais apoios sociais concedidos pelo Estado percebemos melhor a dimensão do que está em causa.

Há pelo menos 2 milhões de beneficiários das Pensões de Velhice - é a prestação social mais pesada para o Estado - que são concedidas às pessoas com mais de 66 anos, que tenham descontado durante mais de 15 anos para a Segurança Social. Ora, na tese de André Ventura não haveria ciganos neste patamar.

Há mais de um milhão e cem mil portugueses que recebem Abono de Família. As regras para que seja atribuída esta prestação são cada vez mais apertadas e difíceis de contornar.

Nas prestações de Desemprego há 367 mil beneficiários - um subsídio atribuído a pessoas que perderam o emprego, e que por isso tiveram de o possuir - no Rendimento Social de Inserção há 222 mil portugueses beneficiários, com uma média de valor por beneficiário de 88,95 euros e por família de 213,67 euros, uma fortuna como se vê, e o Complemento Solidário para Idosos abrange 202 mil portugueses - é um complemento à pensão que o idoso já recebe.

Ou seja, só para os cinco principais subsídios atribuídos pelo Estado há quase 4 milhões de beneficiários, e a totalidade da comunidade cigana em Portugal - boa parte não elegível para qualquer subsídio - é de 37 mil pessoas!!! É simples de perceber como o raciocínio do candidato é disparatado.

André Ventura aproveitou-se da sua visibilidade mediática como comentador desportivo num canal de TV e foi escolhido como candidato de um partido credível, e com bases sólidas na democracia portuguesa, a uma câmara tradicionalmente difícil para o PSD - onde o partido até se coligou com o PCP. Avançou sem medos nem receios na sua estratégia populista de inspiração "trumpiana" - frases simples e fáceis de decorar, mantras polémicos e de fácil apreensão, ideias falsas mas que o eleitorado não se preocupa em verificar, preconceitos alimentados de forma suave mas eficaz para mentes mais fáceis de manobrar - e instalou-se na primeira linha das notícias e do debate nacional. Com uma esperança também ela simples e inspirada numa pergunta básica: Se Trump conseguiu na América porque não havia de conseguir André Ventura em Loures?".

É estranho que o PSD tenha dado a mão a uma pessoa com este argumentos eleitorais que nada têm a ver com a sua matriz ideológica - se o partido não sabia pior ainda, porque significa escolhe sem critério -, que não tenha retirado o apoio ao candidato e que tenha pessoas a defendê-lo - muitas provavelmente vão ignorá-lo olimpicamente se perder a eleição, outras vão colar-se ao candidato para tirar proveitos futuros em novas soluções igualmente populistas.

A esperança de contabilizar mais uma autarquia falou mais alto mas abriu uma fratura no partido que não sabemos como vai acabar, principalmente se o candidato conquistar a Câmara para o PSD. A ambiguidade de PCP e PS na fase inicial da polémica dizem bem das dificuldades eleitorais de todos os partidos nestas autárquicas, mas também revela a fertilidade dos terrenos políticos para o populismo e para o extremismo ideológico em Portugal. As sondagens posteriores significam que há mercado eleitoral para estas ideias, mas só nas eleições se poderá tirar qualquer ilação mais consistente - sendo certo que a maior parte dos populismos emergentes na Europa acabou por fracassar de forma estrondosa nos momentos da ida a votos.

Posto isto, há um problema com a comunidade cigana que é urgente resolver em Portugal e que ficou provado no primeiro estudo sobre a comunidade em Portugal.

O Alto-comissário para as Migrações revelou em maio que a comunidade cigana no pais é de 37 mil pessoas, sendo que 91,3% não têm o 3.º ciclo do ensino básico.

Há um problema de escolaridade que é urgente resolver.

Por outro lado, dois terços dos ciganos casaram antes dos 19 anos e 16% fizeram-no entre os 12 e os 14 anos.

Este é um problema gravíssimo, tal como muitos outros, a que não podemos fechar os olhos, nem mesmo com a habitual justificação das idiossincrasias e dos costumes culturais que é necessário respeitar.

O debate deve e tem de ser feito, rapidamente, mas fora dos holofotes das campanhas e com respeito pelas leis vigentes no país. Tem de ser um debate para incluir e não para excluir ainda mais. Usá-lo para argumento de campanha só abre a porta a outros perigos populistas e extremistas a que não podemos fechar os olhos.

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