Salazar ainda vive

A polémica à volta do Museu/Centro de Interpretação do salazarismo é um perfeito disparate, daqueles muito portugueses e sem sentido nenhum, com argumentos vazios de sentido e desmontáveis por qualquer criança de 6 anos com dois dedos de testa.

Os povos vivem da sua História, com bons e maus episódios - a nossa tem alguns muito cruéis e bárbaros - e nenhum deles deve ser censurado. Cada um deles representa aquilo que fomos como povo em determinado momento, o que vivemos, o que sofremos, como reagimos, as formas que encontrámos para ultrapassar todas as vicissitudes que fomos obrigados a enfrentar.

Por isso não faz sentido que se diga que há uma História boa e uma História má, uma História que faz parte do nosso dia a dia e que deve ser exaltada e outra que deve ser escondida numa cave escura onde não se vejam as memórias que deixou, com receio de que isso possa servir de homenagem ou exaltação do que quer que seja.

A Alemanha convive bem com uma das páginas mais negras da História mundial. O nazismo está bem presente nos livros publicados, nos monumentos, nos locais infames abertos ao público como é o caso do antigo campo de concentração de Auschwitz.

A História continua viva em Berlim e Nuremberga e em outros pontos da Alemanha. Alemães e turistas são obrigados a ver aquilo que parece ilusório mas que aconteceu na realidade, embora pareça mentira. Coisas que deixam marcas indeléveis nos nossos corações. Nunca mais me esqueci das cartas e dos desenhos de crianças vitimas do nazismo que vi em Praga, na República Checa, ou dos objectos pessoais, das cartas e das fotografias que me deram um verdadeiro murro no estômago no Museu Judaico de Berlim. Documentos que convivem lado a lado com as fotos dos grandes comícios de Hitler, ou dos momentos de intimidade do ditador.

A História tem dois lados e nunca podemos censurar o lado mau com o pretexto de que ajuda a fazer apologia ou propaganda. A História é o que é, está lá e deve ser contada.

Interpretada, é certo, mas contada. Isto é fazer a apologia do nazismo ou é manter viva a memória dos tempos que no queremos de volta? É com isto que se alimenta o regresso de velhos fantasmas ou é desta forma que sensibilizamos os nosso filhos para a necessidade de não alimentarem populismos e fascismos que podem levar-nos ao limite da desumanidade? Quantos locais no mundo nos recordam as barbaridades cometidas, os genocídios, as execuções em massa ou os terríveis efeitos de um terrorismo cada vez mais global?

Se o resto do mundo seguisse o tacanho exemplo português não seria possível que cada um de nós fosse confrontado com algumas das maiores misérias que já conseguimos produzir como seres que conseguem ser desumanos até um limite inimaginável.

Alguns episódio estariam bem enterrados no fundo das memórias dos que os viveram e morreriam com eles, passando apenas de boca em boca numa passagem de testemunho clandestina e sem provas concretas e evidentes.

Está na altura de voltarmos aos tempos em que os nossos cérebros funcionavam de forma autónoma e fugiam dos pensamentos únicos e em manada, sem nos sentirmos perseguidos pelo politicamente correcto ou pela ditadura dos que se julgam com uma moral superior aos demais.

Há pessoas que insistem em dividir o mundo em bons e maus, sem perceberem, ou não quererem perceber, que são precisamente as más experiências que nos enriquecem como seres humanos e que nos provocam uma repulsa à ideia de uma repetição. Há um salazarismo ainda vivo em Portugal, não apenas nos saudosistas desse tempo, felizmente poucos, mas nos que julgam combater o exemplo do Estado Novo tentando impor uma nova censura, com um ar novo, mais fresco e mais moderno.

Impor a censura de uma parte da História é ajudar a que essa parte seja contada de forma incorrecta, interpretada de forma enviesada e usada para convencer as mentes mais fracas. Os populistas e os fascistas combatem-se no confronto com a sua própria História, com as consequências do que realmente aconteceu. Com os factos.

Censurar é ajudar a que a História seja reescrita com recurso às técnicas mais modernas, a vitimização e a manipulação dos factos. Sendo desconhecidos do grande público e não comprováveis com documentos são obviamente mais fáceis de manipular.

O que se deve exigir não é a não existência deste Museu/Centro de Interpretação com argumentos absurdos, mas sim que seja feito de forma cuidada, bem preparada e historicamente inatacável para que sirva de documento e de sensibilização para as gerações futuras.

Alguns dos que são contra a sua construção sabem que vão ser confrontados pela História e terão de admitir os seus próprios erros - alguns muito graves - em todo o processo.

Alguns dos que querem esconder o salazarismo estão na verdade a tentar esconder-se a si próprios, e não a evitar apologias ou exaltações. Porque essas combatem-se com a verdade nua e crua dos factos, que devem estar expostos e visíveis para o público em geral.

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