Emigração fracassada

Os olhos azuis confundem-me. Parece que estou a olhar para o mar. São de uma profundidade, de uma limpidez pouco usual. No rosto, há ondas de pequenas rugas de expressão. Sorri tanto. São pequenos grãos provocados também pela canícula dos verões de Madrid e pelo frio impiedoso dos Invernos. “Paulo”, vou chamar-lhe assim, é português. Viveu 33 anos, 10 deles em Espanha e os últimos meses destes… na rua.

Na véspera do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, apresento-vos um emigrante que ambicionava uma vida melhor, mas ao contrário dos milhares de casos de sucesso que os media expõem diariamente, falhou. Falhou ele, falhou o país dele, falhou o país que o acolheu, falhámos todos nós, que só reparamos na tristeza dos outros, quando a enfiam pela TV, pelos nossos olhos adentro.

Há muito que queria fazer uma reportagem com emigrantes portugueses em Espanha, desfavorecidos. Ao fim de 20 anos de jornalismo televisivo ganhei um olhar de lince, por mais que evite, sempre que calcorreio ruas, vielas, viajo num meio de transporte coletivo ou estou sentada numa esplanada, procuro inconscientemente histórias, motivos de reportagem, novas ideias, inspiração, beber mais e mais dos outros, que tanto nos ensinam. Desde que cheguei a Madrid que me cruzava com eles. Reparava que se escondiam. Tapavam o rosto, enquanto estendiam a mão. Muitos eram portugueses. Nem era preciso ouvir a língua de Camões. Sentia-o. A euforia política dos últimos meses, a instabilidade governativa e tantas outras notícias atiraram a reportagem para mais tarde.

Acompanhámos uma jovem portuguesa, 28 anos, que dedica todos os fins de tarde de domingo aos outros. A Natacha Pessanha, de pele morena, olhos negros como azeitonas e caracóis revoltados, tem um sorriso que se cola aos outros e os contagia. Há meses que participa em rondas solidárias, onde distribui roupa, comida, bens de primeira necessidade a quem vive na rua ou precisa da rua para sobreviver.

É muito difícil gravar imagens ou conversar com alguém numa reportagem destas. Têm vergonha ou, simplesmente, não querem dar a cara, falar para a Televisão, expor-se, mostrar às famílias o inferno em que vivem, com sonhos destruídos e almas devassadas.

Amparo diz-me que quer falar. É espanhola. Só tem um dente à frente e um castelo de dentes podres dentro da boca. Esconde uns olhos enormes, pintados a negro, debaixo de uns óculos de armação pesada, preta. O cigarro nunca se desprende dos dedos. “Vim aqui para dar um pouco do meu tempo à minha gente. Vim aqui para ver o que deixei. A rua é muito dura!”. Não podia ter nome que lhe fizesse mais justiça. Amparo ampara os outros que vivem agora… o que ela viveu 9 anos. Quase uma década passada na rua deu-lhe um traquejo invejável. Fala pelos cotovelos.

“Paulo” também é um tagarela. Aparece na fila de distribuição de sandes e caldo, que junta dezenas de pessoas perto da Ópera, de Madrid. Não se importa de falar para a RTP, mas de costas. Não quer que o vejam assim em Portugal. Tal como Amparo, a boca é a que mais sofreu com a vida na rua. “Quero arranjar os meus dentes. É a primeira coisa, depois de ter os papéis (documentação). Se, uma vez, já consegui um trabalho com estes dentes… imagine com a boca arranjada”. Sorri. Apenas vejo o azul do mar, transparente, cheio de esperança, nos olhos dele, e as sardas nas bochechas. O desemprego atirou-o para as ruas. Graças aos serviços sociais da Câmara de Madrid recuperou um teto e a esperança de voltar a ter uma vida como os outros, de voltar a abraçar as duas filhas que estão, com a mãe, em Portugal.

Uns passos à frente vejo Natacha abraçada a um casal de estatura média. Ele, de cabelos brancos e olhos tristes, dá a mão à companheira dos últimos anos. Não adivinharia a sua sorte, se os visse noutro lugar, num outro momento. São como todos nós, mas não têm um cêntimo para comer. Ele é da zona de Fátima, trabalhou 27 anos na construção civil, em Espanha. Com a crise imobiliária perdeu o emprego, foi operado aos dois joelhos e, agora, vê-se obrigado a mendigar a pensão a que diz ter direito, mas as burocracias não permitem. Chora quando lhe pergunto se gostava de regressar a Portugal. É o sonho de ambos, mas não quer atravessar a fronteira “de mãos a abanar”, depois de tanto trabalho e sacrifício. “Dá-me vergonha”, sussurra.

Acabam as sandes, as bananas e o caldo. Os toalhetes húmidos, pensos higiénicos, sabonetes também já chegaram ao fim. O turbilhão de rostos, vozes, sacos e mantas que enchia a Praça desapareceu. Vejo-os a subir em direção à Puerta del Sol, de mãos dadas, seguidos pela cadela Boneca, que adotaram da rua. Irónico, não?

Agora já só vejo os sacos de plástico que transportavam, ao longe. Desaparecem entre turistas e madrilenos que procuram a melhor esplanada para tapear.

Não tive oportunidade, mas também não senti vontade, de lhes desejar um feliz Dia de Portugal.

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