Sou jornalista, logo humana

Já tentei, por várias vezes. Não consigo. Não consigo deixar de ouvir os gritos. Não consigo desligar, apagar o desespero daquele pai, no Hospital Pasteur, em Nice, quando, por fim, lhe disseram que o filho estava morto. Há mais de 24 horas que o procurava, arrastava-se de hospital em hospital, a acreditar que estava vivo. Kilian só tinha quatro anos. Só quis olhar para o céu e ver o fogo-de-artifício… foi uma das 84 vítimas mortais de Mohamed Bouhlel. Kilian era tunisino, tal como o homem que o matou.

Quando soube que ia para Nice, a caminho do aeroporto, tinha a certeza de que fora um atentado. Podia não ser um atentado terrorista, “encomendado”, orquestrado por e com um grupo radical islâmico, mas era um enorme atentado contra a vida de centenas, milhares de pessoas, famílias, pais que só queriam comer gomas e algodão doce com os filhos, ao mesmo tempo que assistiam às festas do dia da Bastilha, ao mar de cor num céu que, habitualmente, poucos olham porque todos se enfeitiçam com o azul infinito das águas da Cote d´Azur.
 
As imagens, dos vídeos amadores, eram horríveis e, tenha ou não sido um atentado jihadista, quem as divulgou fez exatamente o que os radicais querem. Como escreve Henry Giroux, em “Para Além do Espetáculo do Terrorismo – a Incerteza Global e o Desafio dos Novos Media” (2006), “na guerra das imagens, a tecnologia de vídeo tornou-se num instrumento fundamental utilizado pelos terroristas para distribuir imagens, incluindo discursos de líderes terroristas, decapitações horrendas, telediscos hip-hop jihadista e bombistas suicidas”. Em março de 2012, o canal noticioso do Qatar Al Jazeera recebeu um vídeo com o tiroteio que vitimou sete pessoas, incluindo três crianças em Toulouse. Mohamed Merah, 23 anos, francês, de origem argelina, autor dos disparos, filmou os crimes com uma pequena câmara que transportava ao pescoço. O vídeo que os jornalistas receberam, com o título “Al Qaeda ataca França”, consistia, de acordo com fontes policiais francesas, numa montagem de diferentes assassínios, com música e versos do Corão. Os responsáveis editoriais da Al Jazeera decidiram não transmitir as imagens porque colidiam com o código de ética da rede de televisão árabe. Antes desta decisão, Nicolas Sarkozy, então Presidente francês, já tinha pedido a todos os canais de televisão que possuíam as imagens que não as revelassem em nenhumas circunstâncias. O apelo surtiu efeito.

Em Nice, mais de quatro anos depois de Toulouse, Mohamed Bouhlel não necessitou de nada disso. Nem ele, nem o Daesh, que reivindicou o atentado, apesar de não sabermos, verdadeiramente, se sabia que este tunisino existia ou o que pretendia fazer na baía dos Anjos (curioso o nome da baía que banha a longa Promenade des Anglais), na marginal da quinta cidade mais populosa de França. Outros divulgaram as imagens por ele (s). O que parece certo é que a mente perturbada de um homem problemático, pai de três filhas, que batia na mulher, dançava salsa e frequentava o ginásio, se deixou atrair por vídeos de propaganda e mensagens de apelo a uma jihad individual. Tudo foi planeado ao pormenor, numa noite em que a segurança parecia ter tirado férias, depois do Euro 2016. O predador espera sempre o momento em que a presa está cansada ou distraída e, em Nice, alguém deu o flanco.

Entre vídeos de corpos desfeitos, mães aos gritos pelos filhos, crianças perdidas, casais separados, famílias destruídas, existe a satisfação, o regozijo de quem quer lançar o terror, o medo, a insegurança. Cada partilha, cada visionamento, cada fotografia, cada imagem, promove o terrorismo, torna-o mais forte, agita mentes mais frágeis, dá material para a doutrinação de outros e mais outros…

Mário Mesquita questiona na obra “O Quarto Equívoco” se neste novo ambiente, de novas e inquietas tecnologias, “o jornalista deve continuar a preferir a atitude distanciada, isenta, desapaixonada, à semelhança do cientista social ou do historiador? Ou deve tomar como referência a conduta intuitiva, emocional, artística do escritor ou do artista plástico?“. Confesso que, no meu entender, o jornalismo deve estar no balanceamento de ambos e que não é fácil, nunca foi, noticiar nestas condições (já o experimentei inúmeras vezes, desde simples acidentes de tráfego, ao Tsunami no Sri Lanka, a queda da ponte de Entre-os-Rios, o aniversário do 11 de Setembro ou nas reportagens com crianças à beira da morte, por má nutrição severa em África). No entanto, cabe-nos a nós esta nobre profissão, tal como nos cabe alertar e impedir que certas imagens sejam difundidas. O grande problema é que já não está dentro do nosso controlo e a sociedade não imagina o poder monstruoso, terrorista, que tem nas mãos.

Madrid, 21 de julho de 2016

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