Felizmente podemos

Confesso-me quase herético, perante o comportamento expectável de um “jornalista de desporto”: estava em Alvalade, de smartphone na mão e em pleno Clássico, a beber avidamente as sondagens das autárquicas. Mas, pior que ser quase herético, foi ser um num monte deles: ao meu redor havia imensos “jornalistas de desporto” a desviar olhar para a política na web.

E já nem falo dos que anunciavam – em plena bancada de imprensa – a atualização ao minuto da contagem de feridos na Catalunha, sem se cingir à posse de bola. Em vez que se centrarem no que é do seu métier, porque até um Barcelona - Las Palmas tinham, já que alguém teve a ousadia de o manter em pleno dia de referendo catalão!

Tal era o cenário de desenraizamento, entre tantos “jornalistas de desporto”, que assumo a convicção irónica de que, podendo, a Liga jamais permitiria que se voltasse a marcar um ato eleitoral em data de clássico, um referendo catalão em dia de eleições autárquicas!

E sim, nos longos intervalos entre remates mesmo-à-baliza do clássico, ainda ouvi por ali falar do atentado francês que, se pretendia mais impacto mediático na península…

Confesso-me quase herético, mais jamais um herético pleno. Porque as notícias e fotos me foram dando conta de que, em… pleno, fervente e prioritário ato eleitoral, os candidatos e seus festejantes, eleitos e demais seguidores, faziam lá nas sedes de campanha o mesmo que eu: um olho na bola ou em Barcelona, outro nas contagens do que, para eles e até para mim, era o mais importante do dia. Até houve – valha-nos Deus! - Festejos autárquicos vestidos com camisolas de clubes, cânticos trazidos das claques… Eleitos e derrotados clubistas. Até comentadores de bola, pausados ou retirados!

Elegemo-nos, escolhemo-nos.

Celebrámos a Democracia e tudo o que é dela, pela ordem que a Liberdade nos deu de escolher por nós, de todas as notícias, a que a cada qual vale mais que tudo.

A bênção que é termos a possibilidade de hierarquizar, pelo indelegável desígnio da nossa atenção, tudo o que o Mundo tem para nos revelar. A felicidade de, investidos do pleno poder de editores da nossa cidadania, a ninguém devermos uma escolha primária do que nos pode - deve - em cada momento, interessar mais.

A impossibilidade de, quem quer que seja, ditar ao outro – porque quer ou porque julga poder querer - uma doutrinada versão da sua própria liberdade de escolha. Em nome do sabor maravilhoso do dia da democracia, saúdo o nosso dever de fazer da Liberdade, todos os dias,
a nossa maior obrigação.

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