O meu primeiro autógrafo

Este é o meu tempo. Não sou daqueles que se segura ao vinil, à música tocada a agulha de diamante, que fica com o ânimo estacionado no parque fechado da nostalgia. Guardo memórias, mas guardo memória livre para mais.

Acabei de ir lá atrás buscar uma história banal. O futebol caçou-me o coração em família.

Para mim, nascido em Lisboa, naturalizado monsantino, crescido suburbano, a ida ao estádio metia farnel e era de dia completo. Os melhores croquetes do mundo, quem sabe se uma arrozada no tacho embrulhado em jornal, pão do bom e um sumo, tudo desbastado, com ou sem formigas, num piquenique de jardim público. Às vezes, a minha mãe nem entrava. Ficava a tricotar ou simplesmente a gozar o sol ou a folga de nós. O meu pai pagava as almofadas para a bola (como eu amava que o método oficial de devolução fosse atirá-las para a relva), comprava-me nogats ou amendoins para ir roendo no banquete de futebol.

Começávamos por ver os juniores antes dos seniores, que a relva daquele tempo não era mariquinhas-pé-de-salsa como a de hoje. Claro que era demais esperar que nós, os putos, gastássemos toda a almofada a que tínhamos direito. Era por isso que da bancada para o relvado havia um portão, que às vezes se abria para nos deixar passar. E, coisa seguramente inacreditável para quem não é desse tempo fantástico, nesses dias era atrás da baliza o ponto de encontro da miudagem.

Sim, os miúdos tinham acesso ao sacrossanto fundo do relvado. Fiz ali amizades de parque infantil, corri, apanhei e fui apanhado, até à bola podíamos jogar durante certos intervalos. Na barba e bigode dos ídolos. Entre eles e a bancada.

Ocorreu-me ontem que nunca invadi o relvado. Nunca me ocorreu sequer pedir um autógrafo, até aos 16 anos.

1984. Dizia o jornal que a Seleção partia para o Euro de França dali a duas horas. Sei lá porquê , penseu que, tantas vezes li sobre partidas e chegadas ao aeroporto e nunca lhes tinha sentido o cheiro.

Dono e senhor de um passe social e respetiva autonomia… Portela comigo.

E ali estavam eles. Jogadores, jornalistas, treinadores. Nessa altura, não havia cordão de segurança. Era a minha intransponível timidez a montar guarda ao grupo. E não, não me deixava passar. Roía-me. “Vence isso, pá! Vai lá!”. Nada. As pernas pareciam stewards. Não sei o que me desbloqueou. Mas vi-me avançar finalmente, como que num transe estranho, fora de mim.

Cheguei-me à frente. E não foi até jogador algum. Parei em frente ao Toni, que trocava conversa na despedida em família, ali mesmo à mão. Engasguei-me. Gelei, arrependi-me, estaquei. “Vai, pá! VAI! Já vieste até aí!”
“ Eh pá… e que é que eu digo?”. Fiquei ali uns bons minutos enquanto os meus eus debatiam. Lá avancei.

“Desculpe incomodar, Sr. Toni.” Garganta seca, voz a sair esganada. “Posso pedir-lhe um autógrafo?”.

Mirou-me. Deu! DEU! Com um ar meio danado, a interrupção de vozinha frouxa não lhe deve ter dado grande imagem de mim. Mas DEU!

Pisguei-me que nem um Obiqwelu. Triunfos guardados.
João 1 – Timidez 0. “G’anda Toni! O meu primeiro autógrafo”. Guardei-o bem. Tão bem, que não sei dele.

Tenho pena desta miudagem que, mais valente que eu, tem que correr como um velocista, agora contra a lei e não apenas contra a timidez. Compreendo: os tempos são outros.

Eu é que sou o mesmo. Mantenho memória livre para mais, mas guardo memórias.

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