Perdemos no Festival

No meio de tanta alegria, há uma estranha e bizarra sensação de perda que não me larga. Eles não sabem, mas são a primeira geração para a qual ser Campeão Europeu ou levantar o troféu da Eurovisão são dados adquiridos. Feitos que se vão fundir nas felicidades estatísticas.

A partir de agora, quando assentar a emoção, serão apenas mais dois belos factos, sem o peso bem pesado de tanta tentativa e erro que marcou a minha geração.

É que do erro sistemático, morto e cremado em Kiev, dependia parte irrepetivel da magia inebriante da Conquista.

O acerto vai estabelecer um novo paradigma. O nunca... perdeu-se para sempre. Como a imagem demonstra, deixou de ser intocável.

Andava eu a pensar nisto, cruzo-me com a Lúcia Moniz no corredor da RTP. Cumprimentei, segui caminho. Reconsiderei e recuei.
- Lúcia!
Ela olhou e esperou a sequência com um sorriso.
-Sim?
- Queria só dizer-lhe que não é este primeiro lugar que me vai fazer perder a gratidão pelo seu sexto!
Outro sorriso dela, ainda mais bonito.
- Oh! Obrigada!
- Obrigado eu! - acrescentei.E segui viagem.

O meu coração não tem cor mas tem boa memória. Vai ser preciso mantê-la.

Confidência: não foi a interpretação nem a singela loucura do Salvador, o brilho compositor da irmã, a cumplicidade dos dois manos, a aposta na língua portuguesa, a identidade sem género, a erudição, a solidariedade pela doença, o cheiro a Brasil, a pitada de jazz, o aromazinho a filme ou musical, a simplicidade contrastante, a sensibilidade, a sobriedade, a diferença, o desprendimento da fama, a ausência do fogo-de-artifício, o trajar low cost, o corporativismo (sendo eu RTP) quem pagou a minha empatia com a canção.

O que me roubou o coração à primeira, naquele tema, foi o magistral arranjo de cordas de Luís Figueiredo.

Há uma magnânime irrelevância em cada um dos porquês da relevância que Amar pelos Dois teve para cada um e para a Europa. É assim com todas as músicas que vêm e já não se vão das nossas vidas.

Passei a minha existência a dar pulos de alegria por UM "12 pontos para Portugal"... a expressão mais banalizada da noite de sábado. Parecia um festival de pontos para o país de Gales, contados pelo saudoso Cordeiro do Vale! Passei a minha vida a dar 12 pontos a temas que tiveram entrada direta e inalienável na playlist da minha existência. E sigo marcha.

Sim, há mais um português que já pôs a Europa afinada num quase uníssono. Infelizmente para o Mundo, ainda não foi o António Guterres.

Não é pouco! Mas o Salvador que me perdoe... infelizmente, não creio que seja um sinal de que a Europa tenha aprendido a respeitar mais a erudição do que o disfarce, o conteúdo do que o pacote.

Não julgo que também se tenha ganho ESTE novo paradigma.
Soou-me - oxalá seja do meu ouvido - que a Europa das canções, no seu transe frenético de procurar singularidades vencedoras, se cruzou com tanto mais-do-mesmo, que o keep it simple, desta vez, foi o mais fora da caixa que encontrou. E premiou.

O despojanento foi mais singular que a trança, que o macaco. O português não traduzido foi o exotismo aceite da noite.

A ser verdade, será divertido ver os compositores estrategas, no primeiro Festival da Eurovisão português, a tentar decantar receitas virais do teu triunfo em Kiev. Mas não, Salvador. Não salvaste tanto como parece. E até julgo ter percebido que até nisso concordamos.

Ainda no domingo, quando centenas te saudaram - Ronaldaram! - no aeroporto, eu estava por momentos sem tv e quis saber de ti pelo meu auto rádio. Talvez tenha sido só má pontaria minha, mas... a rádio onde as notícias não tinham hora certa, prometia a tua... para a hora certa.

Outras duas, futebol. Música clássica na seguinte, alternativa na alternativa. As da moda debitavam as escolhas gémeas de sempre, quais concorrentes diretas à playlist que guardamos no telefone, quando não temos rádio.

A Rádio, onde nasci e que amo, que é a Casa da Música... não te reservou o seu Marquês!

Oxalá seja da minha surdez. Soa-me que há uma nova ilha no mar da palha, mas continua a ser a palha a encher a maré.
Desejo-te - e a toda a música que brota do coração - saúde na medida do sucesso, duradoura como a boa memória que me plantaste a 13 de Maio.

A ti, à mana, ao Luís Figueiredo, à tua equipa... e à nada vasta - mas valiosa - dos adubadores RTP: Carla Bugalho Trindade, Gilda Carvalho, João Silva, Miguel Pimenta, Daniel Mota, Francesco Cerruti, Hugo Manso, Inês Santos, Sofia Vivo, Magda Valente, Paulo Dos Passos, Tiago Tobias, Rui Barros , Edgar Fonseca, Alexandre Lau, João Shcuro e Hugo De Sá Nogueira, Maria Ferreira, Gonçalo Madail.
Se não foi Salvador, Redentor...

Foi pelo menos lindo o vosso Semear.

Pelos dois.

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