Abstencionismos

Este ano, outra vez, quase metade dos eleitores não votaram nas autárquicas, apesar dos apelos ao voto dos partidos e do PR, que disse que quem não vota depois não se pode queixar.

Sei que vão dizer que não é a mesma coisa, mas gostava de perceber a diferença fundamental entre um eleitor que se abstém e um deputado que faz o mesmo durante uma votação na Assembleia da República. Uma ideia mil vezes repetida – e que encontra facilmente eco na população, porque as pessoas não querem ser vistas como cidadãos irresponsáveis – é que quem não vota depois não pode queixar-se. Mas ao deputado que se abstém ou que falta a uma sessão parlamentar para não ter de votar alguma lei, por conveniência partidária de circunstância, já se admite que possa pronunciar-se mais tarde sobre matérias do âmbito dessa mesma lei. Qual a diferença?

Seguindo um critério idêntico, teríamos de considerar igualmente que quem votou num partido vencedor também não se pode queixar, se esse partido governar mal. Em última análise, será um pouco absurdo considerar que quem se abstém não pode falar, porque quem se abstém não fica isento dos seus deveres enquanto pagador de impostos e contribuições.

É interessante verificar como a classe política é rápida a valorizar níveis elevados de participação, quando eles existem, mas não faz o mesmo face a uma abstenção elevada. O problema é de legitimidade política. Quanto mais eleitores votarem, mais os partidos se sentem legitimados por uma participação forte.

Algo que se ouve com frequência também é desvalorizar a abstenção com o argumento de que quem não vota é comodista e prefere ir à praia ou ver o futebol. Mas nem todo o abstencionista é comodista, assim como nem todo o eleitor é responsável, no sentido em que nem todo o voto é informado. E não nos devemos precipitar a julgar nem quem vota nem quem não o faz.

A abstenção, na verdade, por muito que se tente desqualificá-la, tem um peso maior do que o dos votos brancos e nulos. Porque estes são, por norma, estatisticamente irrelevantes, enquanto que a abstenção pode esconder duas coisas: um desinteresse dos eleitores – que pode significar a aceitação tácita de que as coisas estão geralmente bem, porque senão iriam votar para mudá-las; ou um descontentamento generalizado com os políticos, os partidos e as instituições, o que não deixa de ser uma tomada de posição com significado político. Isto assusta o status quo, por uma questão de legitimação do sistema político e pelo potencial que pode representar de transferência para partidos que surjam de fora do sistema. Noutros países, muitos eleitores descontentes trocaram a abstenção pelo voto em partidos extremistas.

Há um argumento contra a abstenção que obviamente percebo e que é o da defesa do sistema democrático. Mas deve-se assinalar que a defesa do sistema não se faz apenas através da participação dos eleitores, mas também por via de uma atuação política e institucional responsável, que previna a alienação do eleitorado. Veja-se um caso, a Covilhã, onde as secções de voto não acompanharam o aparecimento de novas centralidades na cidade. Na “zona nova” (Anil), passaram a viver, nas últimas décadas, milhares de pessoas. No entanto, continua a não haver ali uma secção de voto. Essas pessoas, se quiserem votar, têm de se deslocar à zona antiga da cidade. De carro, se o tiverem, ou de autocarro, o que representa, com a frequência de transportes ao fim de semana, uma hora para ir e outra para vir. Como me diz um amigo da Covilhã, isto mostra que alguém anda distraído, e não reparou que a cidade escorregou serra abaixo, enquanto que as mesas de voto se mantiveram lá em cima.

Outro exemplo: a lei eleitoral autárquica determina, na parte referente à organização das assembleias de voto, que “as assembleias de voto das freguesias com um número de eleitores sensivelmente superior a 1000 são divididas em secções de voto, de modo que o número de eleitores de cada [secção de voto] não ultrapasse sensivelmente esse número”. Alguém duvida de que a lei não é cumprida e de que há secções de voto com muito mais do que mil eleitores, traduzindo-se isso, em muitos casos, em longas filas de espera para votar?

O PR diz que a abstenção lhe faz impressão, mas situações como estas, que não justificam só por si uma atitude abstencionista, também não ajudam a mobilizar os eleitores.

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