Amarelos e vermelhos de raiva

O governo e os partidos que o apoiam têm toda a legitimidade para levar por diante a política educativa que entendem ser a melhor para o país. Por muito que se possa torcer o nariz a esse velho desporto nacional que é vir uma maioria sempre desfazer – reverter, como agora se diz – aquilo que outra deixou, isso faz parte da democracia. Coisa diferente é não se respeitar contratos. Custa a entender a razão de se mudar as regras e a interpretação dos contratos, de forma unilateral, quando estão em curso.

O governo PS e a maioria que o apoia entenderam que os contratos de associação celebrados, no ano passado, pelo anterior governo são ilegais porque foram feitos ao abrigo de uma alteração ao Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo que, alegadamente, contraria a Constituição e a Lei de Bases do Sistema Educativo. Pois bem. Se é esse o entendimento da nova maioria, nada impede que se reveja novamente o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo e que se volte a pô-lo conforme aos princípios anteriores a essa alteração. Ou seja, que os contratos de associação voltem a estar ligados ao pressuposto de haver uma carência de oferta estatal.

Já a racionalidade de mudar a interpretação de contratos que ainda estão em vigor por mais dois anos, em vez de deixá-los terminar naturalmente, reservando as novas regras para os contratos futuros, custa a perceber. Não vejo porque não deixar que o Estado cumpra, nestes três anos, os compromissos que assumiu com as escolas, em vez de lhes frustrar as expetativas legítimas que criaram.

Nesse afã de modificar a interpretação dos contratos, o governo deixou, por exemplo, que se criasse uma situação no mínimo questionável. Como é que se continua a apoiar as turmas que estão a meio dos ciclos de ensino e retira-se o apoio a novas turmas de início de ciclo do 5º ano? É que uma turma de 5º ano que seja aberta este ano ainda vai terminar o ciclo dentro do prazo de vigência dos contratos.

A esquerda defende que os dinheiros públicos devem ser bem geridos e aplicados na valorização da rede de ensino estatal, e que quem quer escola privada deve pagá-la. São argumentos atendíveis. A política educativa será aquela que a maioria de cada momento, legitimada pelo voto, entender. Mas seria realmente necessário mudar os contratos a meio, abrindo-se uma guerra com as escolas que rapidamente alastrou ao atual bate boca entre a esquerda e a direita, em Portugal? E isso terá sido feito em nome de quê? Talvez em nome de uma hipotética poupança de 26 mil euros por cada turma que se perde no privado e de outra hipotética valorização do ensino estatal. Talvez.

Poupança é poupança, seja de mil ou de um milhão, dir-se-á, e com razão. Mas parece haver, nesta luta, mais razões ideológicas do que financeiras. É que se multiplicarmos esses 26 mil euros pelo total de turmas que vão desaparecer dos contratos, talvez não se obtenha uma poupança que justifique mandar-se às malvas o princípio da inviolabilidade dos contratos. Já para não falar do que poderão representar, em custos para o Estado, eventuais vitórias judiciais das escolas que decidiram recorrer aos tribunais.

Posto isto, temos os portugueses, como bem gostam, a digladiarem-se sobre o assunto em manifestações de rua e nessa grande retrete pública em que nos aliviamos chamada Facebook. “Amarelos” e esquerda envolveram-se numa vozearia indigna, trocando argumentos em tom de raiva e no bom velho estilo de quem não concorda comigo ou é estúpido ou tem má fé.

Curioso é não ver tanta guerra nem tanto empenho de cada vez que um governo, este ou outro, decide avançar com mais um balão de soro para a banca. Será porque os tostões que se poupa nos contratos de associação fazem imensa falta à escola estatal, enquanto que os milhões que vão para os bancos não fazem falta nenhuma e até podem ir mais? Será porque a banca é tão poderosa que se tornou imune até à mais assanhada ideologia?

Não se percebe que um país sempre tão colaborante quando se trata de salvar bancos e tão cumpridor, até à data, com os credores internacionais apareça depois a fazer peito a um punhado de escolas apenas com o objetivo de poupar uns trocos nuns contratos. Dá realmente a ideia de que o governo só terá decidido mexer nos contratos de associação por pressão dos sindicatos e dos partidos de esquerda que sustentam a maioria. E assim como assim, sempre dá algum jeito ir arranjando umas bandeiras para manter as hostes unidas. Há que cerrar fileiras para as batalhas que aí vêm.

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