Indignação de circunstância

A indignação do primeiro-ministro com o jantar da Web Summit no Panteão só surgiu depois de o repasto ter ido parar às redes sociais e de ter causado agitação. Mas ninguém, no Governo, sabia que o jantar ia ser no Panteão? Custa a crer. E não houve uma alma que se opusesse? Pelos vistos não, pelo menos publicamente. Tudo isto exala um ar de indignação conveniente.

Temos tido vários exemplos de respostas institucionais imediatas a situações que atingem um enorme impacto nas redes sociais e o jantar da Web Summit no Panteão é mais um.

O Urban Beach só está encerrado porque houve um vídeo que foi parar à internet, caso contrário prosseguiriam a discoteca e a violência dos seus seguranças.

O mesmo com os jantares do Panteão, que continuariam a ser autorizados, sem olhar ao mau gosto, ao macabro e aos valores da dignidade e do respeito pelos mortos, que agora se invocam.

A verdade é que, em nome desses mesmos valores, esse jantar, que agora é visto pelos poderes públicos como indigno e ofensivo, podia ter sido impedido e não o foi.

Não o foi porque a atual Direcção Geral do Património Cultural aplica indiscriminadamente a cartilha do Governo anterior e aluga tudo alegremente, desde que paguem.

E porque não ocorreu a ninguém no Governo que o jantar pudesse ferir qualquer susceptibilidade, muito menos sendo um jantar para usufruto de quem aqui chega com os bolsos cheios.

O problema é que o banquete deu brado. Porque tudo o que mete a Web Summit dá nas vistas, e nem toda a gente aprecia a Web Summit; e porque a coisa não lembra realmente ao diabo.

Paddy Cosgrave explicou que no país dele vive-se a morte de outra maneira, mais celebratória, e isso é verdade. Mas Portugal não é a Irlanda nem a Escócia.

A reação do Governo foi então de defesa de valores de que nunca ninguém se lembra. Ou, se são lembrados, logo passam para segundo plano, porque outros mais altos se levantam.

Isto faz lembrar outra situação ocorrida esta semana com o Real Madrid, que mandou retirar a Cruz de Cristo do emblema para conseguir vender melhor o clube nos países muçulmanos.

Este tipo de episódios são sinal de uma coisa muito simples: tudo se vende e tudo é passível de ser rentabilizado. E vai tudo na voragem, símbolos e valores.

O caso do Panteão lembra o que Nélson Rodrigues escreveu há mais de quarenta anos: hoje os mortos começam a ser esquecidos logo no velório. Suspeito que continua a ter razão.

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