Isto vai aquecer

Kerry Kennedy esteve em Portugal e deixou-nos, em entrevista ao Público, uma verdade indiscutível. “A atual vaga de refugiados não é nada comparada com o que teremos de enfrentar. O aquecimento global vai provocar vagas muito maiores”. E não é num futuro cósmico. Será já no tempo dos nossos filhos e netos.

O alerta de Kerry Kennedy, presidente do Centro Robert F. Kennedy para a Justiça e Direitos Humanos, coincidiu com a publicação de um novo estudo do Instituto Max Planck e do Cyprus Institute sobre os efeitos do aquecimento global no Médio Oriente e no Norte de África, precisamente as regiões de onde provém a maioria dos refugiados que procuram hoje a Europa.

O que esse estudo nos permite concluir, sem margem para dúvidas, é que, se as atuais vagas de refugiados se devem à guerra e a razões económicas, as próximas, consideravelmente maiores, serão impulsionadas pelas alterações climáticas. No espaço de uma geração, o aquecimento global deverá tornar inabitáveis vastas áreas dessas regiões hoje com 500 milhões de habitantes.

Os investigadores trabalharam com dois cenários. Um no qual se concede que serão atingidos os objetivos da recente cimeira de Paris, de limitar o aquecimento global a menos de dois graus. E o outro, denominado “business-as-usual”, em que se admite que nada será feito para conter as emissões de CO2. Em nenhum dos casos essas regiões escapam à degradação das condições de vida.

No melhor cenário – o de um aquecimento global médio abaixo dos dois graus –, a temperatura de verão, nessas regiões, aumentará mais de quatro graus, em trinta anos. Os dias com calor

acima de 46 graus ocorrerão com maior frequência. Esses dias anormalmente quentes já duplicaram para 16, desde 1970. E deverão ser 80, em meados do século, mesmo no melhor cenário.

Alarmismos, dirão. Convém, então, esclarecer que, para chegarem a estas conclusões, os investigadores do Max Planck e do Cyprus Institute pegaram nos dados do clima registados entre 1986 e 2005 e compararam-nos com as previsões para esse mesmo período feitas a partir de 26 modelos distintos. Como as previsões se revelaram acertadas, foram usados os mesmíssimos modelos.

Por último, estas duas instituições analisaram também a situação atual no que respeita à poluição por partículas finas, naquelas zonas do globo. Verificou-se que a poeira na atmosfera aumentou 70% na Arábia Saudita, na Síria e no Iraque, desde a viragem do milénio, supondo-se que em resultado do aumento do número de tempestades de areia causadas pelas secas prolongadas.

A pressão migratória que estes cenários irão gerar sobre as fronteiras da Europa são mais do que evidentes, como bem assinalou Kerry Kennedy. Dir-se-á, pelo que atrás ficou exposto, que pouco se poderá fazer para o evitar. Mas não fazer nada ou continuar, como até aqui, com uma política migratória europeia feita em farrapos será, que ninguém tenha dúvidas, muito pior.

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