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Morro de saudade

Estou em Morro de São Paulo, um daqueles lugares aonde a gente, quando sai, quer muito voltar. Praias paradisíacas, clima tropical, restaurantes e bebidas geladas, gente bonita para cá e para lá. Este sítio tem tudo e tem mais: tem muito que se diga sobre a situação dos negros no Brasil atual.

Morro de São Paulo fica a duas horas de barco de Salvador da Bahia, a capital do estado que tem o maior concentrado de culturas africanas do Brasil, com uma população largamente negra ou mulata. Mas no Morro a maioria é branca. 


Os turistas vêm da Argentina, do Chile, de Israel e da Europa. Ou então são brasileiros brancos. Os donos das pousadas, bares e restaurantes idem. Na verdade, são poucos os baianos com grandes negócios no Morro. Há os proprietários dos supermercados Estevão, os da Pousada Patachocas e pouco mais. Quase tudo está nas mãos dos europeus e argentinos, ou então de brasileiros ricos do Sul. O empresário Mário Goes, um dos principais envolvidos no escândalo Lava Jato, tem aqui uma propriedade, para onde costumava vir de avião particular.

À grande maioria dos negros e mulatos baianos está reservado servir o branco, turista ou empresário. Eles trabalham nos hotéis e restaurantes, vendem nas praias, tocam nos bares, empurram carros de mão com malas entre o porto e os hotéis - os "táxis" do Morro -, limpam a areia dos pés das turistas deitadas nas camas de praia. É raro o negro que faz férias no Morro.

Ele está aqui "tentando se virar", nem que seja como "gigolô".Moisés, um empregado negro do hotel onde fiquei em Salvador, dizia-me que gostava de conhecer o Morro, porque, mesmo sendo da Bahia, nunca aqui veio. Com certeza está mais preocupado em garantir o sustento diário da família do que em tirar uns dias de descanso em Morro de São Paulo. É que a pobreza dos negros e mestiços, no Brasil, é persistente. Continuam a ser os que menos ganham, os menos alfabetizados e os mais afetados pelo desemprego. E as mulheres negras sofrem de tudo isto ainda mais.

Salvador já não tem os enxames de vendedores com fitas coloridas do "Senhor do Bonfim" que havia há dez anos, são agora menos. O Bolsa Família, obra de Lula, tirou muita gente da pobreza mais abjeta, sendo que sete em cada dez beneficiários desse programa social são negros. Mas a cidade continua marcada pela pobreza e pela toxicodependência. Os visitantes estão constantemente a ser avisados contra os "malandros" que podem aparecer. E as zonas turísticas são muito policiadas.

Numa peça deteatro a que assisti na rua, no Terreiro de Jesus, os passantes eram alertados para a desigualdade racial que ainda existe no Brasil, e que "as pessoas não veem porque vivem agarradas às telenovelas e aos celulares", como dizia uma das personagens, negra - a peça só tinha um branco, o "Governador".

A ascensão social dos negros, neste país, tem sido um trabalho de Sísifo. Com o fim da escravatura, em 1888, a situação não melhorou, pelo contrário. Eles ainda tiveram de esperar mais 50 anos pelas primeiras conquistas sociais, obtidas durante a Revolução de 30. O populismo de Vargas, na década de 40, trouxe mais benefícios. Aos poucos, os negros foram-se afirmando nos desportos e nas artes, acederam aos empregos públicos, tornaram-se proprietários de comércios ou profissionais liberais.

Uma nova e importante vaga de progressos surgiu com o crescimento económico vertiginoso que começou em 1968. A quantidade de negros e mulatos que entraram, nessa altura, nas faculdades disparou em flecha, pensando-se que havia finalmente chegado a hora de dar um sentido real ao velho mito brasileiro da "democracia racial", a hora de acabar com o preconceito e a desigualdade no país. 

Mas o que aconteceu foi que as empresas passaram a contratar esses negros instruídos por salários mais baixos do que os dos brancos que faziam o mesmo trabalho.Mesmo assim, os anos 70, com a educação dos negros e a formação de movimentos como o "black soul" - inspirado na música negra norte-americana -, foram fundamentais para o desenvolvimento do orgulho negro e de uma nova consciência da negritude brasileira sobre a sua própria história. Esses movimentos levaram a que, em anos recentes, a população negra e parda (mestiça) ultrapassasse a percentagem de população branca a nível nacional, muito graças ao fato de haver agora muito mais pardos a auto declararem-se "negros", nos inquéritos nacionais.

No entanto, os negros e mulatos do Brasil continuam a sofrer de um problema estrutural. Porque se concentram no Norte e no Nordeste, regiões historicamente "condenadas" ao subdesenvolvimento, desde o fim da economia esclavagista. Porque não tiraram partido do plano nacional de industrialização e desenvolvimento urbano, orientado para as regiões do Sul e do Sudeste, onde os negros foram sempre minoritários, e vítimas da chamada "ideologia de barragem", que via o negro como "impreparado" e, portanto, não tão habilitado para o trabalho como os imigrantes europeus brancos. 

Finalmente porque o Brasil, na verdade, nunca deixou de ser uma sociedade "aristocrata", dominada por brancos de preconceitos enraizados.Por tudo isto, Morro de São Paulo é hoje um espelho da marginalização dos negros que ainda persiste no Brasil. Marginalização não no sentido vulgar, mas sociológico, em que "marginal" é o que "está na borda, no limite exterior da sociedade, mas do lado de dentro, articulado ao que se convencionou ser o centro, desempenhando uma função com relação a ele", segundo a definição de Joel Rufino dos Santos, autor de "Saber do Negro", um pequeno livro, com menos de 200 páginas, que recomendo pôr na bagagem a quem queira vir de férias aqui para o Morro.    

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