Ora aí estão os Zeligs outra vez

Pedro Filipe Soares disse que o Bloco de Esquerda não pediu a demissão de Rocha Andrade porque o Bloco "não faz sugestões públicas desse cariz ao governo". Presume-se, então, que tenha pedido a demissão em privado, no recato de um gabinete. Ou então a coerência é uma batata e estamos a assistir a mais um momento “Zelig” da política nacional.

No filme “Zelig”, de 1983, Woody Allen interpretava Leonard Zelig, um homem que ganhava fama internacional pelo talento extraordinário que exibia em se adaptar às pessoas e circunstâncias que o rodeavam. O caso das viagens pagas pela Galp a Rocha Andrade para ir assistir a jogos do Europeu, em França, volta a fazer lembrar esse inesquecível “camaleão humano” de Woody Allen, o que, diga-se de passagem, não é raro na política partidária nacional.

Certamente todos nos lembramos de que, há pouco mais de um ano, o Bloco de Esquerda, já com a sua atual direção em funções, pediu a demissão de Fernando Leal da Costa, porque, depois de uma reportagem da TVI sobre as condições nas urgências hospitalares, o então secretário de Estado adjunto da saúde afirmou que tinha visto na reportagem as pessoas "bem instaladas". Agora o Fernando é outro, chama-se Rocha Andrade, e a posição do Bloco também não é a mesma.

Será porque o Bloco de Esquerda considera que é eticamente mais grave o desabafo público de um governante sobre uma reportagem televisiva do que outro governante aceitar viagens oferecidas por uma empresa que tem um litígio com o Estado precisamente na área que é tutelada por esse governante? Ou será que, ao afirmar que o Bloco "não faz sugestões públicas desse cariz ao governo", Pedro Filipe Soares quis deixar subentendido que foi sugerida a demissão de Rocha Andrade mas em privado? É que só assim será possível preservar um mínimo de coerência.

A propósito de coerência, recorde-se outro episódio. Pouco antes do caso Leal da Costa e da reportagem da TVI, António Brigas Afonso demitiu-se da liderança da Autoridade Tributária e Aduaneira devido à polémica com a alegada lista VIP de contribuintes que o fisco teria elaborado. O mesmo Pedro Filipe Soares afirmou, na altura, que a demissão de Brigas Afonso, só por si, desmentia Passos Coelho, que garantia que não existia qualquer lista VIP. O Bloco parecia, pois, acreditar que a demissão de Brigas Afonso no fundo era uma assunção de culpabilidade. Ou seja, que a lista existiria mesmo e que Brigas Afonso, na qualidade de chefe do fisco, teria estado envolvido no "complot" para a elaboração da lista VIP e que, por isso, se demitira. Porém, deste mesmo Bloco de Esquerda não se ouviu um "ai", quando, no início do ano, Fernando Rocha Andrade, já secretário de Estado, escolheu o mesmo António Brigas Afonso para assumir o cargo de subdiretor-geral dos Impostos Especiais sobre o Consumo. O Brigas mau passou a Brigas bom ou, pelo menos, a Brigas aceitável, um Brigas assim assim.

Isto não é só com o Bloco de Esquerda, obviamente. Para os partidos, há brigas boas e brigas más dependendo de estarem no governo ou na oposição. O PSD e o CDS não têm feito nem mais nem menos, no caso das viagens de Rocha Andrade, do que aquilo que criticaram ao PS, ao PCP e ao Bloco, quando estavam no governo. Já para não falar da oportunidade de trazer a público o caso Rocha Andrade numa altura em que o PS e o Bloco vão aparecendo, nas sondagens, muito próximos da maioria absoluta. A quem terá servido a denúncia da situação?

Em suma, lá nos vamos arrastando nestas intermináveis ladainhas, quando talvez fosse mais útil estar-se a debater maneiras de resolver aquele que, juntamente com a dívida, é verdadeiramente o problema central do país: o investimento. Sem investimento, que tem vindo a cair como se não houvesse amanhã, não há crescimento económico. E sem crescimento económico não haverá forma de continuar a pagar, a prazo, nem salários nem reformas nem coisa nenhuma. Só com o dinheiro emprestado que nos vai chegando. Para já , então, façamos figas para que a torneira do crédito não deixe de pingar, como já aconteceu, para mal dos nossos pecados.

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