Postal da Florida

Passei os últimos quinze dias na Florida, alguns nos lugares onde cresceu e ainda vivia Omar Mateen, o autor do massacre na discoteca de Orlando. A Florida é um lugar irreal. Uma terra onde a natureza bruta foi forçada a acolher a impecável organização urbana da paisagem americana. E onde sempre se sente essa condição de natureza enjaulada, de território selvagem a que meteram um açaime. Está-se, neste lugar, como no “Blue Velvet”, de David Lynch. Tudo está sujeito à organização perfeita de uma maquete, mas por vezes desconfiamos que nos vai aparecer, algures, em algum momento, uma orelha cortada caída aos nossos pés, como no filme. Paira um espectro de ameaça no paraíso onde os americanos vão morrer.


A Florida foi um roubo descarado que o homem fez à natureza. Orlando foi semeada no meio de lagos e pântanos. Poucas cidades terão uma tão grande concentração de lagos. São às centenas. Orlando atrai milhares de turistas aos seus parques de diversões, mas é também uma cidade onde as casas construídas perto dos lagos têm de estar protegidas por vedações, por causa dos jacarés. Há dias foi notícia que uma criança morreu atacada por um jacaré num lago perto do parque da Disney. Os lagos e pântanos da Florida são habitados por mais de um milhão de crocodilos, e os incidentes com estes animais acontecem de tempos a tempos. Um perigo sempre à espreita.

Cabo Canaveral, próximo de Orlando, faz parte de uma área muito ampla de reserva da vida selvagem, e o Centro Espacial Kennedy, ali instalado, surge como um implante inesperado na paisagem. É toda uma bizarra e impactante “logística sci-fi” erguida entre lagos e pântanos junto ao mar.

Miami é outra bizarria. A cidade povoa os sonhos hedonistas dos milionários e das celebridades, mas acaba de ser nomeada como a pior para se viver nos EUA. Foram ponderados vários indicadores do nível de vida, como o crime, o rendimento médio das famílias, as condições de alojamento, o ambiente e as infraestruturas, o acesso à saúde e à educação ou a oferta de lazer, chegando-se a esse triste primeiro lugar no ranking das piores cidades americanas. Ninguém diria, olhando para Miami Beach, o lido de Miami , com os seus condomínios e hotéis “art deco”, perfilados ao longo de South Beach, onde as praias e ruas fervilham de luxo e ostentação. Ou reparando nas mansões com iate à porta que ocupam as ilhas da belíssima baía Biscayne, território exclusivo dos mais ricos entre os mais ricos da América. Mas quando se passa a ponte sobre a baía e se vai, por exemplo, aos bairros de Little Haiti ou Liberty City, que concentram a população negra de Miami, é outra conversa. Nesses lugares, o forte cheiro a dólares que se sente em Miami Beach dissipa-se por completo. Pobre e linda cidade, Miami.

Chega-se de Orlando a Miami pela autoestrada Florida Turnpike. Viajar por estrada, na Florida, é uma boa forma de perceber a inclinação americana para a homogeneização e a preocupação obsessiva com as regras, a ordem e a segurança – por alguma razão os americanos, sobretudo os americanos brancos, que constituem a maior parte dos 20 milhões de habitantes da Florida, são tão apegados às armas. As localidades sucedem-se indiferenciadas, iguais umas às outras, configurando uma paisagem urbana monótona, uniformizada e altamente organizada. Nas estradas, os carros parecem quase todos acabados de sair do stand. A sinalização é impecável, há radares constantes, ninguém acelera, cumprem-se escrupulosamente os limites de velocidade. Os placards eletrónicos estão-nos sempre a lembrar que nunca devemos deixar as crianças sozinhas dentro do carro – morreram 673 crianças sozinhas dentro de carros, nos EUA, nas últimas duas décadas –, e os outdoors nas bermas das estradas aconselham-nos “advogados agressivos” para as mais diversas situações. “Escorregou e caiu? Contacte-nos!” As praias estão enxameadas de proibições: “No pets! No alcohol! No surfing!”, no anything. “It’s the law!” Uma utopia de ordem e segurança.

Tudo isto no meio de uma natureza hostil. Feita de pântanos, jacarés, pragas de mosquitos, calor húmido tropical, trovoadas diluvianas. E furacões. A Florida Turnpike termina em Homestead, às portas dos pântanos eternos que se estendem pelas Everglades. Homestead foi totalmente destruída pelo furacão Wilma, há onze anos. Os furacões são o karma dos floridianos e estão omnipresentes no quotidiano. As estradas que integram a “rota de evacuação de furacões” estão perfeitamente identificadas, por placas azuis, e os jornais fazem suplementos especiais sobre o assunto, quando chega a época dos furacões e ventos tropicais.

Homestead é ponto de passagem para as magníficas Florida Keys. Um portento de engenharia une essas ilhas que formam o apêndice meridional dos EUA, estendendo-se por mais de 150 quilómetros para dentro do Estreito da Florida. Vai-se por uma estrada, mar afora, seguindo ilha a ilha, numa distância como de Lisboa a Leiria, até chegar a Key West, outro dos lugares simbólicos da Florida. As Keys são habitual pasto para os furacões, mas isso não impede que os reformados americanos continuem a eleger aquelas ilhas como destino de sonho para a compra de casa com barco à porta (um must em toda a Florida, a casa com barco à porta). Key West, a mais célebre das Keys, é conhecida por ser refúgio de escritores (Ernest Hemingway) e presidentes (Harry Truman, que largou as bombas nucleares sobre o Japão, passava lá a vida) e por ter sido ali encontrado o fabuloso tesouro afundado, há quatrocentos anos, com o navio espanhol Nossa Senhora de Atocha. Os americanos gostam de procurar tesouros. É vê-los nas praias da Florida a varrerem a água e os areais com detetores de metais.

É tal a quantidade de navios espanhóis afundados ao largo da Florida que, a um dos troços de costa, a norte de Palm Beach, resolveu dar-se o nome de Costa do Tesouro. Foi precisamente para aí que se mudaram os pais de Omar Mateen, o terrorista da discoteca em Orlando, também eles em busca do seu tesouro particular. Procuraram ali as condições de vida que perderam no Afeganistão, depois da invasão soviética, e que também não encontraram em Nova Iorque, o seu primeiro porto de refúgio na América. Omar foi criado em Port St Lucie e vivia agora, com a mulher e o filho, em Fort Pierce, no mesmo condado. Trabalhava como segurança no edifício do tribunal, em Fort Pierce. Percorrendo Port St Lucie, Fort Pierce e todas as localidades vizinhas onde Omar Mateen cresceu, estudou e se fez homem, como Jensen Beach e Stuart, fica-se outra vez com a impressão de que algo não bate certo – sempre essa impressão na Florida... Custa a crer que nestas pacatas, prósperas e disciplinadas zonas balneares junto ao mar e à Lagoa Indian River possa desenvolver-se um espírito capaz de massacrar dezenas de pessoas numa discoteca. Mas aconteceu. É a tal orelha cortada de “Blue Velvet”. Que, como bem sabemos, pode sempre surgir em qualquer ponto dos EUA. Como dizia o mayor de Port St Lucie, a seguir ao massacre de Orlando, Omar Mateen era dali mas podia ser de “Anytown, USA”.

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