Prince. A morte fica-lhe tão bem.

Primeiro Bowie, depois Prince. O que é que explica tanta comoção quando morre uma destas figuras da música pop? O impacto da sua obra, claro. As canções com que crescemos, que nos acompanharam os passos, que nos fizeram sonhar. Mas também uma máquina de marketing muito bem montada, capaz de transformar celebridades em mais do que isso: em autênticos ícones populares que vieram ocupar um lugar que antes estava reservado aos deuses. Prince era o epítome dessa realidade, o resumo da nossa condição pós-moderna.

Numa obra de 2010, Pop Cult: Religion in Popular Music, Rupert Till, investigador do Departamento de Música e Teatro da Universidade de Huttersfield, no Reino Unido, explicava o que tem vindo a acontecer com as principais estrelas da constelação pop, na cultura ocidental contemporânea, a partir da segunda metade do século XX e até aos dias de hoje.

Nomes como David Bowie, Madonna e, em especial, Prince, deixaram de ser apenas “celebridades” – figuras muito conhecidas que atraem as atenções e geram receitas – para se tornarem em fenómenos mais sérios: ícones populares que conseguiram elevar a sua fama ao ponto de passarem a ser alvo de uma veneração que, anteriormente, apenas era devotada às entidades religiosas.

Isso não acontece por acaso. A ascensão destes músicos à condição de “novos deuses” da cultura popular é o resultado de uma estratégia montada para os transformar em arquétipos da sociedade de consumo capitalista. Tornam-se peças centrais do estímulo ao consumo de produtos sem qualquer valor funcional, no qual se suporta a ideologia do crescimento económico infinito.

É por isso que estas figuras aparecem frequentemente associadas a um imaginário, meio real meio ficcionado, de um estilo de vida extravagante, recheado de limousines, roupas de griffe, mansões luxuosas e grandes “entourages”. São os consumidores perfeitos, mitos fabricados para venderem tudo o que está associado aos seus cultos particulares. Semideuses com produtos para vender.

A indústria musical pega nos instintos tradicionalmente ligados aos rituais de devoção e observância religiosa e transfere-os para as “pop stars”, de forma a fomentar os comportamentos consumistas. Não é de admirar, por conseguinte, que, nesse processo, se recorra a técnicas de criação de ícones muito semelhantes àquelas que eram utilizadas nas tradições religiosas.

Ora veja-se o caso de Prince. O músico de Minneapolis era um dos exemplos mais completos destas novas criaturas que podem apenas existir nas sociedades pós-modernas, caracterizadas pelo esbatimento de fronteiras – desde logo entre o sagrado e o profano – e pelo interesse crescente em expressões não convencionais de espiritualidade, mais do que nas confissões religiosas tradicionais.

Havia uma evidente introdução de elementos do sagrado no trabalho de Prince. O que, aliás, não surpreende, se atendermos à mistura recorrente de sagrado e de profano na longa tradição musical afro-americana. Blues, R&B, soul, funk e disco, todos géneros presentes no compósito musical de Prince, incluem, sem exceção, elementos provenientes da música espiritual negra.

De resto, a sua principal influência assumida enquanto performer, em palco, foi James Brown, ele próprio inspirado no comportamento dos pastores afro-americanos. Prince utilizava referências religiosas, nos concertos, para criar uma atmosfera de transcendência e emoções poderosas, os espetáculos funcionando quase como uniões místicas entre o músico e a sua congregação.

Mesmo o uso da cor púrpura apresentava aspetos de esbatimento da fronteira entre o humano e o divino. No desenho tradicional de ícones religosos, a cor vermelha representava a vida divina e a cor azul a vida humana, sendo a cor púrpura a junção das duas. Os senadores e imperadores romanos usavam o púrpura nas togas, e daí que essa cor tenha passado a estar associada à aristocracia.

Até o símbolo gráfico que Prince adotou, a dada altura, para se identificar, tinha uma conotação religiosa. Ele reduziu-se ao símbolo para contestar o facto de a Warner Brothers estar a usá-lo como uma mercadoria, explorando-o e multiplicando lucros à sua conta. Mas, na realidade, continuou a mercantilizar-se a si mesmo através desse símbolo. A diferença era ser em benefício próprio.

Tudo em Prince foi a cuidada construção de uma imagem que se tornou no fator dominante do seu sucesso, independentemente das qualidades como autor, produtor e intérprete. Mesmo a música que criou foi pensada para alargar mercados, mesclando tudo: as tradições musicais da América branca e negra, o rock e o funk, o gospel e o psicadelismo, o disco e a pop dos novos românticos.
 
Para este cocktail foram também fundamentais a sexualidade ambígua e a atitude transgressora, que lhe asseguraram uma cobertura mediática massiva. A voz de falseto e o visual andrógino, as letras abordando incesto, masturbação ou sexo oral, o erotismo do funk e dos primeiros blues, a pose macha de guitar hero alternando com a ambiguidade sexual dos novos românticos.

No final, verificámo-lo com Bowie e agora com Prince, acaba por ser na morte que estes ícones populares contemporâneos se revelam em toda a sua plenitude, com as manifestações de pesar a encherem o espaço mediático, agora ampliado pelas redes sociais. E, claro, sem que a engrenagem consumista montada em seu redor trave o passo. Pelo contrário, avança ainda com mais fulgor.

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