Razão e coração. Costa é fixe!

Quando António Guterres se candidatou pela primeira vez a primeiro-ministro, em 1995, escolheu como slogan a frase "razão e coração", contraponto afetuoso à imagem austera de Cavaco Silva, que estava então em declínio. Marcelo Rebelo de Sousa demonstrou, nas presidenciais, que o "truque" dos afetos, a seguir a anos de tensão e austeridade, ainda resulta. E António Costa, hábil como é na gestão política, tem trilhado um caminho semelhante. Com bons resultados, para já.

É mais ou menos consensual a ideia de que vivemos hoje dias de distensão, de alguma pacificação da vida política, fruto da entrada em Belém de um Presidente mais "afetuoso" do que Cavaco Silva e graças também à forma hábil como António Costa tem sabido conduzir a chamada "geringonça".


Na verdade, Costa não perdeu um pingo do talento que evidenciou, em 1993, quando apostou que um burro ganhava a um Ferrari, na Calçada de Carriche, em hora de ponta. E ganhou! Ganhou o burro e quase ganhou Costa, no caso a câmara de Loures, que perdeu apenas por uma unha negra.

O primeiro-ministro não só não perdeu o jeito para o palco mediático como ainda o aprimorou. Esta semana deu pelo menos três provas disso mesmo. Primeiro, marcou uma sessão pública para fazer a referenda da lei que repôs os feriados. Teve, claro, de explicar o que o levou a trazer cá para fora um mero formalismo que, por regra, ocorre no recato dos gabinetes.

Justificou que era "um ato de pedagogia cívica", que "há princípios, valores e acontecimentos cuja memória e celebração não podem estar à mercê de cálculos ocasionais, impulsos ideológicos e fins propagandísticos". Não houve, portanto, nem cálculo ocasional nem finalidade propagandística na cerimónia de reposição dos feriados, garantiu-nos o primeiro-ministro.

Houve sim, segundo Costa, "a convicção de que celebrar as grandes datas da nossa história não é desperdiçar recursos, mas sim investir e criar valor para os vindouros". Poder celebrar os feriados de 1 de dezembro e 5 de outubro será, pois, para o Governo, fundamental para o nosso futuro. Tudo certo. Mas justifica uma sessão pública a assinalar a reposição dos ditos?

Houve depois outra cerimónia pública para apresentar o Programa Nacional de Reformas. O Governo foi mobilizado em peso para a apresentação de um documento que é rotineiro - todos os anos os estados membros têm de apresentá-lo a Bruxelas, em abril - e que, por norma, contém nada mais do que generalidades. Mas foi profícuo, deu para Costa ir à televisão fazer novos apelos à mobilização, à negociação, ao consenso e à estabilidade.

Finalmente, a assinatura pública do memorando de entendimento para resolver o problema dos lesados do BES, um documento que não resolve coisa nenhuma, apenas estabelece as bases para um eventual entendimento, mas que já proporcionou ao Governo umas belas imagens e fotografias de família, amplamente divulgadas, naquele dia, na comunicação social.

Para uns, estamos diante de sinais inequívocos de que o Governo continua em campanha e a preparar-se para a eventualidade de a "geringonça" não durar. Outros leem estas ações do primeiro-ministro como uma forma hábil de promover uma certa pacificação necessária à governação, nestes tempos ainda de grande incerteza e que podem, por isso, trazer novas dificuldades.

Em qualquer caso, esta mediatização de atos públicos deixa sempre o receio de que tudo não passe de fogos fátuos. Há dias, a insuspeita Catarina Portas, apoiante de Costa no seu primeiro mandato na câmara de Lisboa, contava que abriu uma loja no bairro do Intendente, renovado pela câmara, e que "esse processo estava a ser muitíssimo bem conduzido". Pena que "no dia a seguir às eleições tudo isso tenha sido abandonado", disse ela.

"António Costa deixou de estar no seu gabinete no Intendente e passou para a câmara. O que é natural, tinha de o fazer. Mas de alguma forma a atenção da câmara esmoreceu muito. Foi logo desfeito o Grupo de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária, o gabinete que tinha sido criado para aquela renovação do Intendente", desabafou Catarina Portas, no Público.

Razão e coração, então. Como com Guterres, há vinte anos. António Costa apela à razão dos portugueses, para que confiem na estratégia do Governo para relançar o país, e fala-lhes ao coração. Mas falta saber se a conjuntura permite que não terminemos no mesmo pântano em que acabou Guterres.    

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