Requiem por um ministro

Agora que João Soares se demitiu receio bem que os jornalistas deixem outra vez de falar de "cultura" nos títulos. Salvo raras e honrosas exceções, a cultura só está em destaque nas notícias quando se dá a morte do artista ou o prémio ao artista. Fora isso, só mesmo quando aparece um ministro a ameaçar demitir ou a prometer dar umas bofetadas a alguém.

Foi realmente uma pena João Soares ter-se demitido. Eu que, há uns anos, como jornalista, acompanho os assuntos da cultura, não me recordo de ver tantas vezes a "cultura" nas parangonas como com este ministro. Ele foi a promessa de demissão sumária de António Lamas, ele foi a ameaça de umas "salutares bofetadas" aos colunistas do Público... a "cultura" semana sim semana não sempre em destaque!

Confesso que me entusiasmei e que começava já a ver por um canudo os tempos em que a cultura - a par da ciência - era o parente pobre das notícias, sempre remetida para os rodapés, depois da economia, depois da política, depois do futebol, depois de tudo. Mas eis que João Soares vai embora e com ele a esperança de ver os jornais, as rádios e as televisões a falarem mais regularmente de "cultura" nos espaços nobres dos noticiários.

Aliás, não se percebe tanta indignação pública contra João Soares. Era o homem certo no lugar certo. Teve pinta a forma como explicou as ameaças a Augusto M. Seabra e a Vasco Pulido Valente, dizendo que reagiu com "uma figura de estilo de tradições queirosianas". Note-se que só um ministro da cultura podia prometer um par de "salutares bofetadas" a alguém por ter "bolçado umas aleivosias e calúnias". Outro ministro qualquer diria: "se continuam a esticar-se ainda lhes vou às trombas".

De resto, segundo o Público, o ministro terá tido mesmo o cuidado de, "três horas depois da publicação do post", voltar ao Face para "corrigir a ortografia de um par de palavras" (apostamos em "bolsado" para "bolçado" e "alcool" para "álcool"). Quem senão um ministro da cultura - que além do mais é escritor e editor literário - se teria dado a semelhante trabalho?

De modo que considero erradas quer a chamada de atenção do primeiro-ministro quer depois a demissão de João Soares. António Costa devia antes ter incentivado o ministro a manter o tom mas a escolher melhor as ocasiões para lançar as suas diatribes. Por exemplo, anunciar que demitia António Lamas durante a visita que fez a Guimarães para a apresentação do programa do 150º aniversário do nascimento de Raúl Brandão. Ou prometer as salutares bofetadas à margem da visita que efetuou recentemente ao Património Industrial, Moageiro e Ferroviário do Barreiro.

Assim o ministro conseguia que os jornalistas escrevessem: "Soares prometeu demitir António Lamas à margem da apresentação do programa comemorativo de Raúl Brandão" ou "o ministro ameaçou esbofetear Augusto Seabra e Pulido Valente durante uma visita ao património Industrial, Moageiro e Ferroviário do Barreiro". Dessa forma João Soares estaria a exercer a liberdade de expressão, que tanto preza, e ao mesmo tempo a promover a cidade de Guimarães, a obra de Raúl Brandão e o património barreirense. Ao optar pelo Facebook e por uma comissão parlamentar para dizer o que disse o ministro foi apenas estéril, esbanjando oportunidades de pôr em prática uma efetiva política de promoção cultural.    

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