Nós, eles e os outros

Éramos portugueses, espanhóis, franceses ou alemães, éramos diferentes mas animava-nos a ideia de podermos ser todos cidadãos europeus. Não era um amanhã que canta mas era uma ideia que encantava: um espaço de liberdade, uma moeda comum, uma união de estabilidade e crescimento, o atenuar de disparidades regionais, a dissipação de fronteiras, a livre circulação de pessoas e bens. E o voto. Um voto independentemente da nacionalidade em eleições locais e eleições para um parlamento comum. Éramos nós. Nós cidadãos europeus.

Mas veio a crise financeira, com a banca mundial a paralisar. E sem quase se saber como, alguns de nós tornaram-se eles: eles, os que viveram acima das suas possibilidades, eles, os que gastaram dinheiro a mais. 


É verdade, alguns gastaram a mais... Gastou-se em nome da urgência em manter a economia do sistema, o dia-a-dia sem grandes sobressaltos de um espaço comum. Os estados substituíram-se à banca criando vastas obras públicas para que o dinheiro pudesse continuar a circular. O problema é que alguns países endividarem-se mais do que deviam e podiam e caíram na armadilha da dívida e do défice. A conta chegou cedo demais e sem maneira de pagar... Inventaram-se, por isso, programas de "redenção". 

A "solidariedade europeia" encontrou então dinheiro para pagar aos credores. Mas a troco de alterações substanciais no modo de vida, a troco de uma austeridade que se dizia necessária e que teve consequências devastadoras no quotidiano dos países intervencionados. Só os gregos, entre 2010 e 2015, receberam duzentos mil milhões de euros. Destes, cento e quarenta e cinco mil milhões (números fornecidos pelo actual ministro alemão da economia) foram para pagar aos credores. As dívidas eram, em percentagem significativa, à banca francesa e alemã. 

Tudo isto quebrou um laço fundamental entre europeus e fez ressurgir populismo e nacionalismo por quase todo o lado. Em lugar da prosperidade prometida temos hoje as sementes da discórdia. E como se não bastasse, chegaram os outros. 

Os outros são pessoas. Pessoas. É gente em fuga do horror da guerra, da fome, do receio de uma vida sem futuro, com uma parte de responsabilidade europeia no horror da guerra, da fome e da vida sem futuro desses outros. 

Esses outros entraram neste quotidiano europeu sem serem convidados e esperam um mínimo de solidariedade. Não sabem que a solidariedade se perdeu quando deixámos de ser nós, europeus. Os gregos, por exemplo, voltam agora a receber remoques inaceitáveis e humilhantes, desta vez porque não estarão a fazer o que os tratados lhes impõem no tratamento a esses outros. E é assim que a pretexto desses outros se fecham fronteiras, se destrói ainda mais um ideal de paz e humanismo, fundamentos do projecto europeu pensado por Robert Schuman e Jean Monnet, e posto em prática por homens como Adenauer, De Gaulle, De Gaspieri. 

Nós, eles e os outros talvez ainda possamos construir um destino comum. Se é que ainda vamos a tempo de conter as forças destrutivas que se iniciaram quando a solidariedade entre europeus foi rompida e a União Europeia se transformou num espaço de valores difusos, onde a única regra para cumprir é a da contabilidade financeira. Com a agravante de não parecer igual para todos. Sobra-nos a ilusão das palavras, aquelas promessas de liberdade, de prosperidade partilhada, de solidariedade e coesão, de justiça social. 

A União Europeia precisa de regressar aos seus princípios, aqueles que a forjaram no pós guerra, aqueles que nos fizeram um dia sentir que podíamos ser nós. Nós, europeus!

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