"Alguns de todos tinham morrido"

A Exposição tem nome de viagem. E é sempre assim. Como se a carga do artista fosse nos dada para entender melhor o mundo. "Luanda, Los Angeles, Lisboa" tem António Ole, um dos mais brilhantes senhores do pensamento artístico africano que, no violento passar do tempo, nos continua a dizer: somos mais se olharmos à volta.

Lá tinha o acontecimento de ser angolano e querer ser artista. Um dia, pegou nos jeitos próprios e apaixonou-se por um Picasso que era tão europeu como impressionante. Mas o segredo do pintor cubista e difícil estava em África. Que maravilha. E então descobriu que a independência que tinha nos olhos era mais que certa. Angola tinha essências de identidade. E gente como Ole e Duarte de Carvalho e outros sem nome escrito nos cadernos do pós-qualquer coisa. A Exposição que o Museu Calouste Gulbenkian nos oferece diz do artista e de nós, remetidos ao espelho e aos pesadelos, mas também a uma esperança que arrebate. São pinturas, filmes, instalações entre escultura e restos, mas acima de tudo uma fotografia sobre a presença ausente, esses lugares desumanizados onde que deixamos a marca. Da Solidão.

Ainda que ausente, há uma presença constante nos corredores desta exposição. Chama-se Ruy Duarte de Carvalho, companheiro das artes, das lutas e das luas de Ole, que por questões de geração e de liberdade andou junto nessa nova Angola que nascia dos angolanos. Ruy andou também pela nossa conversa e por esse sorriso sempre aberto, todas as vezes que Ole se lembrava dos desenhos do amigo, das noites do Namibe e dos bois e das areias do povo Kuvale, onde Ruy ficou depois de morrer. Alguns de nós tinham morrido… e Ruy Duarte de Carvalho morreu antes. Antes de nós conseguirmos saber como lidar com isso.

A Conceição é uma das mulheres que António Ole retratou. Uma das mais bonitas que conheci na vida. Tem o filho às costas e fala dos outros como se a guerra não tivesse sido para ela tão má. Fala da guerra civil, de irmãos contra irmãos e dos colonos que lá estiveram tantos anos. A Liberdade, para a Conceição, é tão valiosa como para Montaigne ou Sartre. E duvido que tenha tido biblioteca ou que percebesse alguma coisa de finanças, como previa Pessoa. A Conceição está num filme sobre a vida e os dias de luta e de capacidade. Dessa capacidade que só os fortes têm de continuar. Mesmo que todos nos digam que o mundo é dos privilégios. Até hoje, muitos e tantos se esquecem que os croissants da rainha ficaram todos em Versailles, no dia em que a sua cabeça foi decapitada pelo povo.

Ah!... Tem povo, este mundo? Diz-nos que sim, António Ole. “Alguns de nós tinham morrido” (se não me falha a memória) é frase que Conceição diz num dos documentários de Ole. E sim, alguns de nós somos vivos. Porque a Conceição do António diz que o povo quer mais que croissants. Quer Liberdade.

“LUANDA, LOS ANGELES, LISBOA” - exposição retrospectiva de António Ole no Museu Calouste Gulbenkian, com entrada gratuita aos domingos à tarde e patente até janeiro de 2017

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