Canela e cominhos

Por sortes desta profissão, entrei na oficina de Vhils. Lugar para os lados do Barreiro, no meio dos barracões da indústria desmembrada, em nostalgias viradas ao Tejo sempre denso, descobre-se branco e imaculado, cheio de espaços e sem vazios.

E quando se diz sem vazios é porque todas as paredes têm ocupação. Ou portas ou janelas ou tintas ou cartazes de rua, ou ferramentas inteiras ou ferros partidos. E depois pessoas. Gente sempre a passar, atarefada e miúda, equipa formada pelo artista, que sempre vai dizendo que a comunidade existe para além do ideal. E é de se ver. Nos sorrisos dessas pessoas que por lá passam, nos olhos brilhantes das obras “escritas” nas paredes do mundo.

A expectativa de entrar em sítios assim é sempre grande. Imagina-se a “desarrumação do artista”, a confusão das cores, a luz ténue. Mas não é nada disso. Cada vez mais, os locais de trabalho dos artistas são organizados, definidos, sem romantismos ou outras intimidades. O que conta não é a “aura” artística, mas a eficácia, a eficiência, a lógica e a conclusão. Enfim, a obra. E isto que escrevo é um elogio. A equipa de Vhils junta a imaginação do génio com a inteligência do mundo. E depois a mensagem. Em cada das obras feitas, em cada lugar escolhido, em cada tempo determinado, há em Vhils intenção séria de artista que se diz nas periferias, as margens da urbanidade onde, cada vez mais, irrompem novas criações (a lembrar a banda Buraka Som Sistema e o escritor Bruno Vieira do Amaral, prémio Saramago de Literatura com o livro As Primeiras Coisas). Ao lado, é cada vez mais o centro e o ponto de partida é cada vez mais um mero sítio de passagem. Significa que os “bairros pobres” e os “subúrbios fechados” têm essa energia vital da criatividade deste país. Se Vhils, Buraka e Amaral já são alguns dos maiores artistas que temos, imaginem quando as pessoas que os acompanham nessa ideia de “periferias” começarem a votar. Sempre acreditei em “misturas”.

Há dias, enviaram-me um envelope cheio de especiarias. Viajou por um mês inteiro da Índia até Portugal. Chegou bem. Mas a canela e os cominhos tinham-se misturado. E o sabor ficou perfeito. Surge-me agora como a metáfora ideal.

  • As Primeiras Coisas, de Bruno Vieira Amaral, Quetzal
  • Underdogs Gallery (fundada por Vhils): Rua Fernando Palha 56, Lisboa
  • Komba (2011), Buraka Som Sistema

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