E os vizinhos também lavam o autocarro da associação

É sempre um dos acontecimentos do ano: a apresentação do Festival de Almada, um dos mais importantes festivais europeus de teatro. Até diz o encenador Miguel Seabra que é do mundo inteiro. Também acredito. E se o é, é porque é cuidado, amado, transformado, relacionado. Os loucos são os capazes de fazer.

Nem posso muito falar. Nem fui assim tantas vezes ao teatro de Almada. Nem sei nada. Apenas das sensações, das pessoas que o dizem, dos textos que o acompanham, dos mestres que o suportam. Nem conheci pessoalmente Joaquim Benite. Apenas em cruzamentos profissionais. Foi Benite que teve a ideia. E conseguiu concretizá-la. Mesmo que vivendo num país onde ideias são diariamente desprezadas. Desprezadas, se não roubadas. Acontece tantas vezes. Uma assinatura, um programa, uma frase inspiradora. Acontece que, se uma ideia tem já uma pessoa indissociável, é rejeitada. Querem todos ser brilhantes. O medo de perder “altar” é terrível (palavra qualificativa pela negativa em jeito de António Guerreiro que, de olhar lúcido em lúcido pensamento, nos diz ainda mais disto tudo).

Benite teve a ideia. E um punhado de gente que acreditava nessa boa vontade de fazer bem. Pegou numa cidade enjeitada, num lugar desprezado, cheio de gente sem mediáticas elites ou capas de filosofias conhecidas. E acreditou que junto de outros, a expressão “camarada” seria mais do que um lugar político. Como disse o jornal Público no momento da sua morte, inventou um público. E isso de nos inventarmos em conjunto é das mais comovedoras tarefas. É isso que procuro no jornalismo. Construir mais, entender mais, dar mais.

Quando me dizem que o jornalismo tem de ser mais distante, menos próximo, desconfio. Tenho pena. Que ainda haja jornalistas que ditem fronteiras, em jeito de “somos de outra classe”. Enquanto o jornalismo se mantiver distante, em linguagens de croissants para matar a fome, os napoleões dessa comunicação vão continuar a cair do seu mais alto fabricado império.

Devem ter sido as centenas de crónicas de António Guerreiro que me permitiram agora dizer assim. E também Adelino Gomes, que tanto me disse da esperança no jornalismo feito com humanismo. Ah, e David Borges. Há tanto da minha pequena coragem que vem das conversas pungentes e fortes dos finais de tarde, quando construir ideais era mais do que um sonho.

E sim, Joaquim Benite. Que tanto cuidou das pessoas e construiu para continuar depois da sua morte um dos mais importantes festivais de teatro do mundo. Do mundo inteiro que somos. A ideia sempre foi cuidar de todos. É por isso que o Festival Internacional de Teatro de Almada tem 33 edições e sobrevive à sua morte. Quem dera, a cada um de nós, que gesto anterior fosse assim celebrado. Partilhado.

A minha janela mostra-me que há vizinhos que cuidam da sua comunidade. Lavam o seu autocarro, limpam as janelas e os pneus mascarrados, para que no sábado seguinte possam levar as crianças pelo país fora. Felizes. Um dia, conto de um torneio distrital de judo. Tem a ver com o Teatro de Joaquim? Tem sim e senhores mais.

Essa noção de missão.


  • Festival Internacional de Almada - 4 a 18 de julho

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