“Ghostwriters” e os fantasmas que os obrigam a escrever

Há-de ser uma trupe, dessas com manias e asas e desejos wenderianos que andam por aí, a dar janelas e lugares, perdas de sentidos e brancas paisagens que desesperam por si. Os escritores têm esses fantasmas que são essas sombras da escrita, que atormentam quem se escapa a escrever. E é tanto para lá do acaso.

As férias têm esse tempo certo, em jeito de ritual a cumprir uma vez por ano, de pegar em livros escolhidos, para as leituras santas. Encontrei dois livros, daqueles que há muito tinham lugar na prateleira dos imperdíveis (já começa a ser aquele lugar demasiado ocupado, para tão pouco tempo nesta vida de e-mails sempre a saltar numa caixa de correio “amortal”). Ainda não foi neste verão que os “O Segundo Sexo” Vo. 1 e 2 de Simone de Beauvoir (ed. Quetzal) sairam dali. Ainda assim, diz logo a abrir, numa espreitadela inevitável: “A categoria do OUTRO é tão original quanto a própria consciência.”

Dito isto, assim de forma tão simples, até parece que todos podemos ser assim. Ilusões (sempre nisso, não tens cura). Desse lugar quase sagrado, de vénia e lembrança, apanhados foram “Justine”, o primeiro volume do famoso “Quarteto de Alexandria” de Lawrence Durrel (ed. BIS, Leya) e uma relíquia comprada algures na América “The Moral Theory of Moral Sentiments” de Adam Smith (ed. Prometheus Books). Deste último, falaremos mais tarde.

Justine é essa mulher de trágicas ideias, amores inevitáveis, vidas eternas pelas palavras dos amantes, jogadora contra a morte, tristeza pura. Cada linha lida de pensamento masculino, tem essa “deusa” improvável, de corpo presente em fantasma contínuo. Livro escrito em memórias por descobrir, mesmo dentro de quem as diz, antecipa isso mesmo, o desejo do leitor em continuar. A obra, para lá da suposta ficção, tem essa inevitável transparência do escritor, que escreve sobre escritores, que imagina sobre a verdade, que se estende numa memória que também só pode ser a sua. Justine é mais do que um romance, essa novela de enredos indesmontáveis (como esses bonequinhos de peças pequeninas que depois do “click” final, só quebrando voltam a não-ser).

Dessa mulher tão real, Durrell deixa escapar o seu fantasma, sua diária presença que se torna impossível de não escrever. E quando se chora neste livro por acidente, chora-se com Durrell. Por Durrell.

O “verão quente” de Alexandria acabou. E Balthazar que me espera pacientemente, nesse outro fantasma de Lawrence Durrell, enquanto os meus fantasmas voltam a despertar para o quotidiano violento de voltar a não ter pensamento, de acordar os dias, para os camuflar, entre as corridas e os cafés, sorrisos e empurrões, passos e voltas e novos espelhos e escovas de cabelo.

Esses fantasmas que se acumulam, como os livros na prateleira dos imperdíveis, andam em fúrias e corridas para dizer tudo e nada deixar. Fazem batalhas diurnas e depois a noite que nada sossega, nem com a Justine, ou outros fantasmas dos outros. Escrever é essa necessidade, alguém diria. Mas é também essa sobrevivente maneira de encarar, de dizer “afinal não estamos sozinhos aqui”, de encontrar essa íntima explicação para continuarmos vivos e precisamente neste mundo. Foi Lawrence Durrell que me explicou isto tudo, neste verão de Alexandria.


“O Quarteto de Alexandria - Justin”
De Lawrence Durrell
Edição BIIS Leya

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