O absurdo não deixa chorar

Dizem que a composição é tudo, numa fotografia. Estabelece o ponto de vista, guia o olhar, recupera instantes. É isso e tudo o resto. Uma sucessão de sombras na luz, que nos resgatam aos dias. A composição, sim. E a verdade.

Mário Cruz é um dos vencedores deste ano nos prémios World Press Photo. O fotojornalista da Agência Lusa, visitou em trabalho a Guiné Bissau e viu nessa viagem, anos antes, o que acontece a algumas das suas crianças. A muitas das nossas crianças. Meteu na cabeça que iria voltar. E tirou uns dias para fotografar os meninos “talibés”; numa realidade que ultrapassa fronteiras, nessa viagem cruel da escravatura humana. Meninos que são retirados a seus pais, para as supostas escolas religiosas. E dias e dias passam, e noites e noites sem fim, em que são obrigados a trabalhar, a mendigar e a implorar para continuar a viver.

O conjunto de fotografias que agora é premiado tem em si uma desgraça, na própria categoria: “Temas Contemporâneos”. Desgraça que se acompanha de raivas e tensões por essa imediata noção de presente. O agora é; a verdade a acontecer; as dores que ainda se sentem e os gritos que continuam.

Olhando para as fotografias de Mário Cruz lembro, ou melhor lembramos, (hipérboles humanistas, me perdoem) das crianças e filhas e filhos e sobrinhos e primos e netos e conhecidos que nos rodeiam. E quando alguma de nós morre (personificação exagerada e intencionada), lamentamos. E choramos.

Mas a idade tirou-me as lágrimas. Já não consigo chorar a morte. Aliás, também não a chorei nesse dia 19 de março de 1981, dia do pai que foi, na sua realidade, o verdadeiro dia do meu pai. Aos 8 anos, desenhei num papel em que já não poderia estar “Feliz Dia do Pai”. Anos mais tarde, percebi que a dor, essa dor que nos ultrapassa, não consegue ser chorada. Fica ali, sem palavras, nem ditas nem escritas, só recortada pelas linhas de desenhos mentais que nos levam para sítios absurdos da incapacidade. E houve dias, dias bem mais tarde, que chorei. Outras coisas.

Tantos anos depois, olho para as fotografias dos meninos que Mário Cruz nos oferece. E não choro. Voltei a não conseguir chorar. Por causa do absurdo. É isso: o absurdo é a verdade.

O trabalho do fotojornalista Mário Cruz, vencedor na categoria “Temas Contemporâneos” do World Press Photo 2016 está aqui publicado, pela revista Newsweek.

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